Em tempos de evoluções da inteligência artificial e recursos inacreditáveis como o ChatGPT, os avanços tecnológicos parecem acontecer mais rápido do que a nossa capacidade de discutir as questões éticas às quais estão ligados. “Não me abandone jamais”, do ganhador do Nobel de Literatura, Kazuo Ishiguro, se torna um livro ainda mais relevante nesse contexto. Publicada em 2005, a obra é um grande alerta sobre os limites humanos que não devem ser ultrapassados em nome do progresso.

O livro acompanha Kathy, Ruth e Thomas, três jovens que moram em Hailsham, uma espécie de colégio interno na Inglaterra. Narrada por Kathy quando ela já tem 30 anos, a história recorda a infância e juventude dos três através de episódios banais, mas que são repletos de significados.

Através dessas memórias, são reveladas as personalidades desses personagens e as dinâmicas que estabelecem. Os acontecimentos também vão deixando entrever o mistério que cerca o lugar onde eles vivem, construindo o suspense de forma delicada mas constante.

O livro tem uma grande revelação ligada com o avanço da ciência, e a escolha do autor em entregá-la aos poucos ao leitor é brilhante. Histórias com viradas causam impacto, mas aquelas que dependem desse mistério para funcionar deixam a desejar – só que esse não é o caso de “Não me abandone jamais”.

Na minha primeira leitura da obra, há alguns anos, já sabia o maior segredo que o livro guarda, e mesmo assim fui surpreendida pelo nível das complexas discussões que ele levanta. Na releitura que fiz na semana passada, eu já sabia de todos os pormenores e pude admirar como foram trabalhados ao longo de todo o livro. Ainda assim, ao final, fui muito impactada por todas as camadas que Kazuo Ishiguro consegue costurar.

As discussões éticas que o escritor provoca são tão relevantes que sustentam o livro por si mesmas, independente dos segredos que a trama guarda. Além disso, as reflexões que faz sobre a vida tornam essa uma obra que ultrapassa o tema que se propõe a discutir. “Não me abandone jamais” é, em última análise, um livro sobre a experiência humana.