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Papo Fermentado

A complexidade das cervejas em contato com madeira

O que se busca ao colocar uma cerveja em contato com madeira é uma micro oxidação da bebida para obter uma nova experiência sensorial

Por Papo Fermentado

09 de setembro de 2021, às 14h48 • Última atualização em 09 de setembro de 2021, às 14h49

Pode até parecer um fato que, recentemente, caiu no gosto dos apaixonados por cerveja, mas a verdade é que os registros de armazenamento de cervejas em recipientes de madeira são tão antigos quanto a história da humanidade. A necessidade de formas de embalagem de comidas e bebidas se manifestaram a partir do desejo das comunidades de terem mantimentos à sua disposição em possíveis momentos de escassez.

Registros de reservatórios similares a um barril moderno remontam a cerca de 5 séculos antes de Cristo, com ocorrências no antigo Egito. Provavelmente, esses reservatórios eram fabricados com madeiras mais macias e maleáveis, porém, com o tempo, os barris passaram a ser feitos de madeiras mais duras, menos permeáveis e resistentes.

No Brasil foi somente na década de 2010, com a expansão e qualificação do consumo de cervejas que se viu microcervejarias utilizando a madeira no seu processo produtivo. Pioneiros como Bodebrown e Morada Cia Etílica utilizaram tanto experimentos com maturação em madeira quanto fermentação em madeira. Foi a Wäls, no entanto, que elevou o padrão da experimentação com a inauguração do seu Atelier e maior barrel room da América Latina. Pouco tempo depois a cervejaria Imigração também trouxe um importante projeto de fermentação em madeiras.

Porque fazer o uso de madeiras e principais características agregadas

O que se busca ao colocar uma cerveja em contato com madeira é uma micro oxidação da bebida para obter uma nova experiência sensorial, gerar mais complexidade para o líquido através de micro e macro reações. São diversos compostos voláteis, ou não, que migram da cerveja para a madeira e vice-versa devido à sua porosidade.

É importante dizer que cada espécie tem sua porosidade particular e que o regime pluvial, temperatura média (que influencia na velocidade de crescimento das árvores) e concentração de gás carbônico atmosférico são fatores determinantes para essa particularidade.

Além da porosidade, a maneira que os componentes fenólicos, a oxidação, a estabilização da cor, a mudança de sabor e o surgimento do caráter amadeirado irão se comportar dependem de outros fatores que podem ser decorrentes da madeira em si, como gênero, espécie, idade, local de cultivo, clima… e também do tratamento que irá receber na tanoaria, como corte, maturação e tratamento térmico.

A madeira possui uma estrutura complexa e alguns compostos são facilmente extraídos pela cerveja enquanto outros necessitam do processo de tosta para tornar algumas moléculas viáveis, como é o caso da lignina, celulose e hemicelulose.

A lignina quando degradada através do tratamento térmico da madeira e do etanol e da água, libera muitos compostos que entregam diferentes características para a bebida devido os açúcares de baixo peso molecular, pois conferem à bebida notas de café, cacau, caramelo, avelã, baunilha, coco, cravo da índia, tosta de madeira, entre outros.

Etapas em que a madeira é inserida no processo cervejeiro e seus formatos

Fermentação e maturação são as etapas em que a cerveja entra em contato com a madeira. É importante ressaltar que a utilização da madeira deve ser calculada sempre com muita cautela. Pouca madeira por litro pode exigir maior tempo de maturação e extrair um nível excessivo de taninos, já quantidades maiores que o necessário podem fazer com que o sabor da madeira se sobressaia aos sabores da própria cerveja. Os formatos mais comuns de utilização são:

  • Barris: definir seu tamanho é fundamental para ter uma bebida equilibrada pois, ao utilizar barris maiores, será necessário maior tempo de contato com a madeira e com barris menores aumentam a área de contato com a bebida, diminuindo o tempo para extração dos compostos. Um ponto positivo de sua utilização é que podem ser reutilizados diversas vezes –  inclusive barris utilizados para maturar outras bebidas anteriormente. Entretanto, são caros e sua manutenção também, além disso, são necessários cuidados com umidade e temperatura da adega.
  • Chips: podem ser embebidos em destilados para acrescentar notas que barris de whisky, por exemplo, trariam. Um ponto positivo é que seu tamanho e formato permitem uma maior área de contato, o que acelera o processo de maturação. Já uma desvantagem é sua difícil remoção da cerveja, sendo indicada a utilização de sacos de tecido similares aos utilizados para dry hopping – há também a recomendação de não reutilizá-los.
  • Cubos: têm similaridades com os chips, como valor de compra e utilização, mas têm a vantagem de poderem ser reutilizados e terem maior facilidade de remoção. Mesmo que o cubo exija maior tempo de maturação, isso proporciona a extração de sabores mais equilibrados e maior profundidade do caráter amadeirado.
  • Estacas e Espirais: o preparo de ambos é o mesmo dos chips e cubos. Possuem a mesma vantagem da rápida extração de sabores dos chips e a facilidade dos cubos em serem removidos da cerveja. Os pontos positivos são a potencialização de extração de taninos e compostos aromáticos sem a necessidade de realizar manutenção. Podem ser encontrados em diversos tamanhos para utilização em tanques, barris e até mesmo garrafas, porém tem o seu custo bem elevado em comparação aos cubos e chips. A utilização de espirais em garrafas permite realizar testes rápidos para adição de cores, sabores e complexidade à cerveja
  • Extratos: o extrato ou a essência de madeira podem ser adicionados durante a maturação ou diretamente à cerveja pronta. A principal vantagem é o resultado instantâneo, oferecendo possibilidade de testes rápidos. A maior desvantagem é a menor complexidade de aromas.

Os barris são muito utilizados e demandam cuidados especiais para terem alta qualidade e atenderem às expectativas dos cervejeiros. Portanto, veremos a seguir como é seu processo de fabricação.

A técnica da tanoaria

Tanto barris virgens quanto barris que já armazenavam outras bebidas (como o vinho, uísque, rum) são utilizados na produção de cerveja. A complexidade adquirida deve ser harmoniosa e sem descaracterizar a cerveja por completo, portanto deve ser possível ainda identificar o estilo base que foi envelhecido e as notas da madeira em um segundo plano e também as notas da bebida anteriormente armazenada, se for o caso.

Ter uma boa cerveja base, fazer uma escolha consciente da madeira a ser utilizada de modo a compreender as características que serão extraídas e verificar sua procedência são etapas que, sem uma ótima e adequada técnica de tanoaria, acabam perdendo-se.  Rigidez, maleabilidade e resistência da madeira são primordiais para determinar a aptidão da espécie à fabricação de barris, pois sua qualidade está diretamente relacionada ao tipo de fibras da madeira e a sua porosidade.

As etapas de fabricação são:

  1. Escolha da madeira: o tanoeiro verifica a qualidade;
  2. Desfiar e bitolar a madeira: desfia a madeira na largura correta da aduela. É nessa etapa também que se aplaina a madeira, ou seja, retira a parte externa que pode conter sujidades;
  3. Corte da madeira na medida exata da peça;
  4. Angulação das aduelas: dornas pequenas exigem maior angulação e as maiores, ângulos menores;
  5. Montagem das aduelas: agrupamento e utilização de anéis de fixação na parte superior e inferior;
  6. Colocação de tampo e fundo: exige muita precisão para assegurar que o barril não irá vazar;
  7. Fixação do terceiro anel no meio do barril;
  8. Acabamento e furação no torno: para tirar angulações indevidas. Usa-se também lixa para polir, cera de abelha e flanela. Nesta etapa são feitos dois furos, um que será a torneira e outro para abastecimento da bebida;
  9. Higienização interna: com água corrente a 70ºC e drenagem pela maneira. O processo é feito duas vezes.

Secagem e tosta

É o processo que consiste na desidratação da madeira até o ponto de equilíbrio de umidade em relação ao ambiente. Este procedimento garante que o barril confeccionado suporte a bebida, uma vez que o preenchimento com líquido garante a dilatação do diâmetro das fibras da madeira em aproximadamente 50% do diâmetro original, mas para que haja expansão das fibras a umidade original da madeira deve ser baixa.

O aquecimento promove a queima da superfície interna do barril e confere sua forma definitiva. Além da mudança estrutural, o processo de queima do interior dos barris é responsável também pela modulação de monofenóis. O termo tratamento é responsável pela redução do teor de extrativos totais, de lignina solúvel, teor de polifenóis totais, extrato seco e aumento de parâmetros como lignina insolúvel e compostos de coloração.

Portanto, o nível de tosta aplicado irá definir as características de cada tipo de madeira, intensificando a coloração, os sabores e aromas que os compostos presentes na madeira irão incorporar à cerveja. Os tipos de tosta mais comuns são:

  • Tosta leve: de 5 a 10 minutos com temperatura entre 180ºC a 200ºC. O objetivo é melhorar a estrutura, com adição de taninos (que são preservados no processo) e destaque para os aromas e sabores naturais da bebida.
  • Tosta média: de 10 a 15 minutos com temperatura entre 200ºC a 230ºC. A madeira torna-se mais pronunciada e diminui o tempo de contato para a reações acontecerem. Enfatiza a vanilina.
  • Tosta alta: de 15 a 20 minutos com temperatura entre 230ºC a 250ºC, podendo ser superior. Aqui temos uma madeira caramelizada, as notas de defumado, pão tostado e chocolate são maiores.
  • Queima (charring): Nesse estágio, encontramos aromas de coco queimado e defumado.

Tamanho dos barris e alguns cuidados

Hoje em dia é possível encontrar barris nacionais menores em medidas de 2, 5, 10, 20 e 30 litros. Geralmente, classificam-se em pequenos volumes (de 20 a 100 litros), médios volumes (100 a 200 litros) e grandes volumes (200 a 600 litros). Barris menores aumentam a área de contato com a bebida e diminuem o tempo para extração dos compostos. Já para barris maiores, será necessário maior tempo de contato com a madeira para extração dos compostos aromáticos. No envelhecimento de cervejas a utilização de barris de 30 litros, por exemplo, proporciona bons resultados a partir de 6 semanas. Para barris maiores o mesmo resultado é alcançado em períodos superiores à 6 meses.

Madeira mais utilizada: o carvalho

Ao redor do mundo existem inúmeros tipos de madeira que podem ser utilizadas nos processos de envelhecimento e maturação, mas aqui vamos nos ater a mais utilizada pelas cervejarias: o Carvalho. Os três tipos mais comuns são o carvalho americano, francês e húngaro, cada um com seu próprio equilíbrio de sabor e complexidade.

A hegemonia do carvalho é devida a um conjunto de características favoráveis no processo de envelhecimento de bebidas: excelente porosidade a gases e alta impermeabilidade a fluídos, composição de extrativos que conferem aromas e sabores favoráveis, possibilidade de formação de diversas moléculas odorantes durante a queima do barril, possibilidade de eliminar moléculas que atribuem características desfavoráveis durante o processo de secagem da madeira, resistência a ataques por microrganismos, alta durabilidade, relativa leveza, propriedades físicas e mecânicas favoráveis como dureza, flexibilidade e resistência.

O carvalho americano tem uma grande doçura aromática, juntamente com um componente de baunilha agradável. Ele fornece uma doce e cheia sensação na boca e é facilmente emparelhada com cervejas mais estruturadas (com mais corpo).

O carvalho francês também tem uma doçura aromática, bem como proporciona uma sensação bucal completa, juntamente com a canela e alguns temperos da Jamaica. É amplamente elogiado por suas características de especiarias e dulçor, além de compostos aromáticos como creme, caramelo e chocolate ao leite.

O carvalho húngaro diz-se fornecer uma grande quantidade de vanilina, juntamente com o café torrado e notas de chocolate amargo. O perfil de todos eles é reforçado durante o processo de queima e os compostos liberados dependem muito da variedade e do nível de queima que receberam.

Madeiras brasileiras

Devido a extensão e diversidade territorial, o Brasil conta com uma grande variedade de madeiras. Esta variedade confere os mais diversos usos, como na construção civil, na marcenaria, na tanoaria, etc. Além da preocupação com a sustentabilidade, considerando que muitas madeiras brasileiras estão em extinção, os responsáveis pela tanoaria também produzem dornas e barris de qualidade superior.

Entre as madeiras usadas para maturação e envelhecimento no Brasil temos:

  • Amburana: perfil de baunilha, cravo, canela e outras especiarias.
  • Bálsamo: aromas intensos de especiarias como anis, cravo, erva-doce e também a sensação de picância.
  • Cabreúva: aromas herbáceos intensos, sabor levemente adstringente, mas envelhecida por um longo período traz amargor à bebida.
  • Castanheira: conhecida popularmente como “o carvalho brasileiro” possui aromas associados a junção do tostado com baunilha, chocolate e caramelo.
  • Cumaru: seu aroma remete a baunilha com bastante intensidade.
  • Eucalipto: quando utilizada a espécie correta e com o tratamento devido o Eucalipto se aproxima das características sensoriais do carvalho europeu, quando utilizado em forma de dadinhos, podem proporcionar uma bebida de dulçor elevado e equilíbrio entre frutado, castanhas e especiarias.
  • Ipê: entrega sabores associados a nozes e castanhas.
  • Putumuju: aromas que lembram frutas vermelhas (morango).

Freijó, Amendoim, Jaqueira, Jequitibá, Grápia são mais exemplos de madeiras possíveis de serem utilizadas.

Temos uma grande variedade de madeiras brasileiras a serem exploradas, talvez esteja aqui uma parte da nossa identidade cervejeira que tanto almejamos. Inclusive, algumas cervejarias já começaram a escrever suas histórias tendo como base nosso terroir.

É preciso conhecimento, estudos, testes e correções. O empirismo faz parte desse processo mas não podemos nos esquecer dos estudos científicos que tanto nos direcionam para projetos bem sucedidos.

Papo Fermentado

Blog do casal Fernanda Brito e Bruno Martinelli, sommeliers de cerveja pelo Instituto da Cerveja Brasil. Amamos contar nossas experiências gastronômicas, a história que envolve a linha do tempo da cerveja e dicas para quem quer se aventurar nesse universo. Fale com a gente pelo ola@papofermentado.com.br ou WhatsApp (16) 99339-1221. Nas redes sociais, somos o @papofermentado.