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Cotidiano & Existência

As mãos de minha mãe

Por Gisela Breno

01 de outubro de 2024, às 10h46

Ela nasceu no dia 8 de setembro em Corumbataí. Meu avô, Luiz Bianco, talvez para economizar, pobre que era, além de registrá-la no dia 31 de março, a tornou gêmea de minha tia Maria.

Suas mãozinhas vieram ao mundo no outono de 1931, e percorreram uma longa caminhada. Criança inteligente e muito aplicada na escola, depois das aulas, percorria, descalça, ruas de Americana, carregando em suas mãos cestas de vime, com verduras a serem vendidas, colhidas de um terreno situado nos fundos de sua casa, no bairro São Domingos. O dinheiro obtido com a venda era dado à sua mãe, minha vó Carmela, que o juntava à parca renda para sustentar seus oito filhos.

Jovenzinha foi trabalhar na tecelagem do Sr. Armando Salvador. Ali liçava e emendava urdumes. Era uma mulher muito bonita. Nem os vestidos simples ofuscavam seu belo rosto e sorriso.

Tempos depois, morando numa casa localizada atrás da Estação Ferroviária, seus olhos começaram a reparar num moço, vestido de terno branco de linho, que vinha de Sumaré para negócios em Americana. Não havia muros, cercas que isolassem a Estação e pela proximidade com sua casa, podia vê-lo tal como ele era. Apaixonaram-se perdidamente e assim, aquelas mãos calejadas puderam experimentar a novidade do suave toque do amor.

Casados, foram morar em Sumaré. Apesar de ser proprietário de uma grande tecelagem, Carlos, um homem culto, doce, honesto, amoroso, não tinha tino comercial. Minha mãe, com três filhas pequenas, para complementar a renda, vinha de trem para Americana, comprava cortes de tecidos da tecelagem Thomaz Fortunato, e os revendia rapidamente, pois era dona de um extraordinário bom gosto.

Anos depois, com cinco filhas, meu pai falido e doente, suas mãos tomaram a rédea da família e as conduziram, no ano de 1974 para Americana. Com a ajuda de seu irmão Jessyr, ela, suas meninas e seu marido, fixaram residência na rua Anhanguera.

Nessa casa, vi, após a morte precoce de meu pai aos 51 anos, as mãos de dona Ana realizarem tarefas que, ao escrever esse texto, tive que parar por vários momentos para chorar. Viúva, 49 anos, cinco filhas e sem rendas, vendeu produtos de limpeza, fez florezinhas de papel, cortou faixas de tecido, vendeu jornais e, por muito tempo, levantando às 5:30 da manhã ia para tecelagens e ficava sentada por horas a torcer e colar milhares de fios, emendando-os de um rolo para outro, nas décadas em que os teares automáticos eram praticamente ficção.

Não tenho como mensurar a gigantesca quantidade de fios, que passaram por suas mãos, muitas vezes doloridas e machucadas por esse trabalho

Mas essas mãos, que edificaram e honraram a minha família, provaram de momentos igualmente inesquecíveis, também para ela que nunca, nunca reclamou do seu destino.

As mãos abençoadas de minha mãe:

Acalentaram com amor desmedido a vida de suas cinco filhas;

Carregaram seu neto, o homenzinho, que ela esperou por uma vida inteira e mesmo com início de Alzheimer puderam, anos mais tarde, mimar seu bisneto.

Jogaram incontáveis partidas barulhentas de buraco, que varavam madrugadas;

Seguraram todo dia cinco cigarros, religiosamente, fumados nos mesmos horários;

Despejaram café na xícara, com olhar atento para ver que animal formava para posteriormente “jogar no bicho”;

Arrastaram seu carrinho de compras, muitas vezes avariado, por toda cidade;

Ofertaram guarda-chuvinhas de chocolate para seu neto e suas netas;

Presentearam com canetas, datas importantes de nossas vidas acadêmicas;

Venderam maiôs e bijuterias na loja de sua filha;

Fizeram pudins deliciosos, mas que, frequentemente, desmanchavam ao saírem da forma;

Enxugaram por incontáveis vezes minhas lágrimas e tristezas;

Compuseram personagens criados para arrancar de nós, escandalosas gargalhadas;

E após dezesseis anos quietinhas na cama, suas mãos foram entrelaçadas nas de sua filha caçula para tranquilamente terminar sua jornada.

Às 4:19 do dia 7 de setembro, um dia antes de completar 93 anos, minha amada mãe foi brilhar na eternidade.

Tenho sofrido muito com sua partida, mas quando a dor cede passagem à saudade, sorrio para ela na certeza de que jamais nos separaremos.

Gisela Breno

Professora, Gisela Breno é graduada em Biologia na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e fez mestrado em Educação no Unisal (Centro Universitário Salesiano de São Paulo). A professora lecionou por pelo menos 30 anos.