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Alessandra Olivato

O silêncio que ninguém ouviu

Mal nos levantamos e os avisos de mensagens no celular nos expulsa sem dó de nosso estado letárgico: o silêncio é um dos itens mais raros dos tempos atuais

Por Alessandra Olivato

29 de setembro de 2021, às 07h34

A vida contemporânea propiciou uma quantidade de confortos inimagináveis às gerações de nossos bisavós, avós e até mesmo pais. Utensílios domésticos com as mais diversas facilidades como lavar louça, tirar pó e descascar legumes, mecanismos antes impensáveis de comunicação, meios de transporte que não só diminuíram em muito o tempo de nossos deslocamentos como possibilitou viajarmos quaisquer distâncias. Entretanto, concomitante à variedade de confortos, perdemos proporcionalmente um dos itens mais raros dos tempos atuais: o silêncio.

Mal nos levantamos e os avisos de mensagens no celular nos expulsa sem dó de nosso estado letárgico, pouco ligando se nosso corpo requer alguns minutos para acordar. Para quem tem o desgostoso costume – ou necessidade – de olhar o celular antes mesmo de pôr os pés fora da cama não raro obriga os demais a acordar com sons de gargalhadas, baterias, musiquinhas dos mais diversos tipos ou piadas com gritos antes mesmo de tomarmos o café da manhã. Desnecessário. Sem contar o barulho dos vizinhos até tarde (bom senso não existe), serras das reformas de final de semana e os barulhos irritantes das buzinas, roncos de ônibus, freadas, motos, arranques e, claro, o pior, carros com equipamentos de som na traseira, geralmente nos brindando com sons que pleiteiam o status de música. Até mesmo o ar-condicionado, queridinho da vida moderna, nos agracia com o seu som ambiente constante, cujo impacto do barulho fica nítido quando o desligamos.

Levanto a tese de que há algum gosto estranho da sociedade atual por excesso de barulho. Mesmo sons habituais ou até agradáveis são ouvidos no geral em alto volume. A TV é alta, o som do carro é alto. Há quem não se contente com o som da banda no bar e faz questão de gritar ao invés de ouvir a música. Quando conversamos, muitas vezes também gritamos  – até porque há muito barulho de fundo.

O fato é que criamos barulhos artificiais demais. Em algum momento deixamos de nos contentar com o som dos pássaros e dos animais, com a comida cozinhando ao fogão, em ouvir nossa própria respiração ou com o som do vento…. (Ah, só de ouvir passar o vento vale a pena ter nascido!) Talvez o último som natural que todo mundo respeita seja o da chuva, esse é difícil de destronar.

Há quem diga que gostar de silêncio e se incomodar com barulho é coisa de velho. E há quem não se importa com certos discursos sociais vazios, como é o meu caso. Ademais, pelo gosto de nascença que eu tenho em desconstruir algumas ideais estabelecidas, penso que gostar de barulho constantemente e evitar o silêncio guarda um pouco do receio de ouvir os próprios pensamentos e sentimentos. Pode não ser tudo isso, mas que tem um fundo de verdade, tem. Apreciar o silêncio guarda algo de ter uma paz própria, de se contentar com o momento ou com tudo aquilo que é e não precisa vir a ser, de não estar ansioso pra nada.

Eu tenho muita saudade do silêncio que nunca ouvi, como o bem descreveu nosso roqueiro-poeta Arnaldo Antunes:

“Antes de existir computador existia tevê
Antes de existir tevê existia luz elétrica
Antes de existir luz elétrica existia bicicleta
Antes de existir bicicleta existia enciclopédia
Antes de existir enciclopédia existia alfabeto
Antes de existir alfabeto existia a voz
Antes de existir a voz existia o silêncio.

O silêncio.

Foi a primeira coisa que existiu

O silêncio que ninguém ouviu.
Astro pelo céu em movimento
O som do gelo derretendo
O barulho do cabelo em crescimento
E a música do vento.

E a matéria em decomposição
A barriga digerindo o pão
Explosão de semente sob o chão
Diamante nascendo do carvão.

(…)”

Alessandra Olivato

Mestre em Sociologia, Alessandra Olivato aborda filosofias do cotidiano a partir de temas como política, gênero, espiritualidade, eventos da cidade e do País.