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Alessandra Olivato

Legalidade e legitimidade

Me vi com esse sentimento de que Lázaro não deveria existir mais. É um sentimento lamentável, me causa pesar e uma boa dose de contrariedade interna

Por Alessandra Olivato

30 de junho de 2021, às 08h33 • Última atualização em 30 de junho de 2021, às 08h52

Todas as ações humanas, comportamentos, nossos hábitos diários, o que fazemos em nosso tempo livre, as nossas relações, o que pensamos e sentimos, o que consumimos e o que evitamos, o que dizemos e o que não dizemos e, mais interessante, as mudanças que vão ocorrendo com o tempo podem ser analisadas sob diferentes ângulos, seja sociológico, jurídico, filosófico, psicológico, econômico, ambiental etc. Mas alguns eventos pontuais são emblemáticos nesse sentido.

Como é o caso de Lázaro. Podemos abordar, por exemplo, sob o ângulo do fato e do espetáculo. Ontem li uma análise em um dos maiores veículos de comunicação do país sobre o quanto a TV aberta é sensacionalista e explora casos como esses em nome do ibope. Concordo em parte. A TV paga explora igualmente os eventos de comoção popular, ainda que o faça por trás de uma fachada requintada, com âncoras dotados de uma retórica elegante e de forma mais refinada e disfarçada. Isso não quer dizer que o serviço jornalístico não esteja presente, quer dizer apenas que o viés ideológico não isenta ninguém e nenhum meio de comunicação.

Então, entre o que ocorreu de fato, se a polícia foi eficaz ou morosa, se parte da comunidade protegeu Lázaro ou não foi bem assim, se ele atirou antes e os policiais se defenderam ou não são questões que provavelmente nunca conheceremos totalmente já que além da notícia somos alimentados cotidianamente pelas formas como nos contam os fatos.

Uma segunda perspectiva sob a qual se pode analisar o caso é em relação ao conceito de Estado de direito, isto é, um estado ancorado em leis que ditam as regras sob as quais uma sociedade deve funcionar. Vale lembrar que o Estado brasileiro, como a maioria das nações, não prevê execuções a criminosos, mas sim penalidades que seguem um processo da retenção ao julgamento até se chegar à penalidade dita correta.

Tampouco é prevista em nosso país a pena de morte. Isso é extremamente importante de se lembrar porque representa uma diretriz muito cara à nossa vida: de que todos nós, sociedade e Estado não podemos sair matando uns aos outros conforme nos aprouver, sob o risco indiscutível de ameaçar o equilíbrio social que permite vivermos.

Os chamados “Direitos Humanos” (assim chamados pelo senso comum) baseiam-se nesse princípio legal quando apontam, por exemplo, que a polícia brasileira é uma das que mais mata no mundo. Se alguém tem alguma dúvida sobre isso, é só procurar por estudos, tem muitos. Mas essa discussão fica pra outra hora.

O terceiro ponto sob o qual o caso Lázaro pode ser analisado é o da legitimidade. Enquanto a legalidade é o poder oficial prescrito pelas leis, a legitimidade pode assumir contornos subjetivos mas não menos efetivos, como a autoridade de pais sobre filhos e de professores sobre alunos, dentre tantos outros.

Embora intrinsecamente vinculada à legalidade, a legitimidade atravessa bem mais o campo do simbólico e, em alguns casos, como em momentos de crise, confronta a lei. Assim, enquanto os defensores dos diretos humanos, em seu legítimo direito, podem lançar a hipótese de que Lázaro foi executado sem julgamento e isso é contra a lei, boa parte da sociedade pensa e sente de outra forma.

E um dos motivos principais para isso é que há muito tempo vivemos uma crise no setor da segurança pública. Consideradas as devidas diferenças regionais, por décadas o Estado parece incapaz senão comete grandes erros em garantir segurança física à população, seja não promovendo condições sociais que minimizem a criminalidade seja não punindo criminosos ou, pior, punindo-os de maneira diferenciada.

O imbróglio que se tornou nosso judiciário – com todo respeito às centenas de excelentes juristas brasileiros – permite a incompreensível soltura de assassinos de crianças e de pais depois de alguns anos de prisão. As brechas legais permitem a asquerosa possibilidade de criminosos de colarinho branco continuarem seus mandatos e até mesmo se elegerem novamente.

Com uma soma incontável de falhas em atender os anseios da população por mais segurança bem como de saborear um sentimento acalentador de justiça, criou-se um crescente sentimento social de que a Justiça é falha e desigual, de que o crime compensa, de que tudo não passa de uma palhaçada e, infelizmente, de que a ideia de ressocialização de bandidos é absurda.

Como socióloga eu ainda acredito nessa tese, mas certamente não para todos os casos e certamente não acredito em relação a assassinos como Lázaro. Assim, esse sentimento social ancora-se em alguns equívocos, mas infelizmente ele tem se tornado cada vez mais legítimo.

Ainda sou contra a pena de morte por vários motivos, sendo o maior deles de que o risco de se condenar alguém inocente à execução sumária não vale a pena, além do que ainda me incomoda ainda a ideia de ser responsável pela morte de alguém, mesmo que indiretamente. Além disso, sempre pensei que ficar enjaulado para sempre numa prisão perpétua é muito pior.

Mas, infelizmente, me vi com esse sentimento de que Lázaro não deveria existir mais, não consigo ter compaixão por estuprador e nem mesmo pelos que maltratam animais. É um sentimento lamentável, me causa pesar e uma boa dose de contrariedade interna. Mas, a despeito de compreender toda a questão política e legal por trás, eu entendo perfeitamente os que aplaudiram a ação da polícia.

Certo ou errado, acredito que punir crimes é uma das principais bases do Estado e da credibilidade de suas instituições, além de acreditar ser fundamental à sociedade o efeito simbólico da punição. Ainda vamos longe para nos entendermos como sociedade e sobre o que devemos fazer sobre nossos desvios.

Alessandra Olivato

Mestre em Sociologia, Alessandra Olivato aborda filosofias do cotidiano a partir de temas como política, gênero, espiritualidade, eventos da cidade e do País.