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Esporte

Vítima de transfobia tem no futsal válvula de escape contra o preconceito

Por Agência Estado

06 de julho de 2022, às 21h00 • Última atualização em 06 de julho de 2022, às 21h29

O jeito sereno e a narrativa tranquila se transformam quando a bola rola em uma quadra de futsal na região central de São Paulo. Habilidoso e com espírito de liderança nato, ele orienta os companheiros e sentencia: “Não gosto de tomar gol e faço tudo para que isso não aconteça”. O futsal, assim como a costura, tem uma função terapêutica na vida de João Daniel desde que ele se identificou como transgênero. Por meio do esporte, uma luta é travada para superar preconceitos e aproximar pessoas com histórico de vida marcados pela discriminação neste encontro semanal realizado nas manhãs de domingo.

“Entendi que era uma pessoa trans com 18 anos. Faço acompanhamento psicológico desde aquela época. Tenho depressão, ansiedade, às vezes choro sozinho e faço terapia duas vezes por semana. Estou mais estável, mas não tanto quanto gostaria. Jogar bola e costurar, que é a minha fonte de renda, ajudam demais. Se eu parar, simplesmente surto”, disse João Daniel à reportagem do Estadão antes do início do treinamento.

Por definição, transgênero é alguém que não se identifica com o sexo que lhe foi atribuído no nascimento. Apesar de ter nascido mulher, João nunca se encaixou como tal.

Aos 24 anos, ele procura juntar os cacos de um mundo que desmoronou sobre a sua cabeça. O pai abandonou a mãe quando ainda era recém-nascido. A base familiar ruiu e essa ruptura deixou cicatrizes. Negro e pobre, cresceu sendo alvo de preconceitos racistas e transfóbicos. “Tive a sorte de não ter sido expulso de casa, mas a convivência era difícil. Quando optei pela transição, tive de fazer tudo sozinho. Minha mãe nunca foi ao psicólogo comigo. Quando comecei a tomar hormônio, a situação se repetiu. Teve a questão da mudança de nome, de quando a barba começou a crescer e os olhares de reprovação. Quando surgiu a chance de sair de casa, fui e nunca mais voltei.”

O pouco contato com a família e a sensação de abandono ainda precisam ser trabalhados. “Falo mais com um tio que é homossexual. Às vezes converso com minha mãe, somos da mesma religião, que é o candomblé. Mas contato frequente mesmo, não tem. Na terapia, tenho de entender que essa base familiar não existe mais. A base sou eu, praticamente.”

O futebol esteve presente na sua vida desde a tenra infância. Junto com a paixão pela bola, o fato de ser uma menina disputando partidas no meio de moleques resgata alguns traumas. “Jogava no meio deles e isso incomodava muita gente. Sofria bullying por causa do meu cabelo e brigava mesmo. Mas nos jogos, era sempre escolhido para jogar antes de muitos meninos”, conta.

Tamanha desenvoltura rendeu medalhas no futsal feminino nos tempos de colégio em Jundiaí até os 17 anos. O prazer de jogar futebol, porém, acabou interrompido justamente por medo de retaliações. “Quando eu transicionei, não tinha mais espaço. Não poderia mais jogar em time feminino e não seria aceito em equipes masculinas. Antes de sofrer com isso, preferi me afastar e passei muito tempo sem atuar.”

Em nenhum momento na entrevista, o nome de batismo foi mencionado. Questionado sobre o fato, a resposta foi direta: “não me representa”. Já a escolha que define a nova identidade é motivo de orgulho e tem raízes familiares. João é em homenagem ao avô. Daniel remete ao nome de uma boneca que foi transformada em boneco. “Sempre tive vontade de ter um filho homem e Daniel seria o nome escolhido.” O nome composto, de acordo com o entrevistado, tem personalidade.

VOLTA POR CIMA
De origem bastante humilde e com o Ensino Médio finalizado, João Daniel luta para tentar se estabilizar. Mas a vida não tem sido fácil. A opção pela transição custou também o emprego onde trabalhava como operador de caixa em um supermercado. Atualmente, uma casa de três cômodos no bairro de Perus é a sua moradia. Na residência, uma máquina de costura é o seu ganha-pão e a cozinha virou ateliê improvisado. Ali são confeccionadas camisas, calças, moletons e diversas peças. Às vezes, a carga de trabalho bate em até 14 horas e a renda é inferior a um salário mínimo.

O espaço é dividido com a namorada Keith. Ao falar dela, um sorriso se abre. “Tem sido meu amparo nos momentos difíceis”. No auge da depressão, João conta que até formas de dar cabo à própria vida passaram pela sua cabeça. “Pensei em me atirar na frente de um carro ou tomar remédios para dormir. Mas a motivação para esquecer isso veio dela (a namorada). Sigo o tratamento. Existe a possibilidade de ser acompanhado por um psiquiatra e até de tomar remédios por causa dessa depressão. Mas tenho melhorado, embora tenha oscilações de humor.”

Vaidoso e com uma barba bem feita, João também tem motivos para se orgulhar. Representando Jundiaí, foi eleito Mister Trans São Paulo. “Primeira vez que estive perto de tantos homens trans de Estados diferentes. Foi muito legal.” A celebração da vitória veio com o punho cerrado para o alto, símbolo do movimento negro. “Não é apenas sobre mim, mas sobre todos os homens trans preto que eu quero representar neste palco”, disse na ocasião. No fim deste ano, um novo encontro com as passarelas está previsto. O concurso Mister Trans Brasil deve acontecer em novembro e ele vai representar o Estado de São Paulo.

Em sua conta no Instagram, um pouco de sua história está registrada. Ali estão postadas fotos dos tempos em que ainda era uma menina e a sequência de imagens mostram a sua transformação e citações sobre o orgulho de ter encarado essa metamorfose. As roupas masculinas e a barba espessa compõem seu perfil. As fotos sem camisa deixam à mostra os seios e um sentimento que ele cultiva para o futuro. “Tenho vontade de ter um filho e gostaria de poder amamentá-lo. Mas antes preciso me estabilizar financeiramente.”

TIME TRANS
A prática de esporte já era uma recomendação médica para ajudá-lo a sair da depressão. E foi um amigo feito nas redes sociais que deu o pontapé inicial para que João Daniel saísse de sua casa, em Perus, para reforçar o T-Mosqueteiros, time de futebol de pessoas trans. “Fiz o convite para integrar o grupo. Além de jogar bem, tem uma baita história de vida. Muita superação”, orgulha-se Gabriel.

O acolhimento e o prazer de voltar a jogar futebol deram outro sentido à sua vida. “Eu me sinto abraçado principalmente pelo fato de o grupo ser formado por pessoas trans. Bom estar em um lugar onde as pessoas me entendem. Aqui não tenho medo de sofrer preconceito”, afirma João. Corintiano, seus ídolos atuais do clube de coração são Willian e Jô, que nem está mais no time. Nessa escala, porém, o preferido é o zagueiro Gil. “Eu me identifico com o seu estilo de jogar.”

Tatto Oliveira, de 42 anos, fundador do T-Mosqueteiros, sabe a importância que o seu espaço abre para pessoas que muitas vezes se isolam do mundo. “O esporte coletiviza. Muitas não se enxergam como seres humanos. Nosso intuito é acolher, conversar, orientar e ter o nosso lazer com segurança.” O time tem pouco mais de 40 integrantes e no mês passado entrou em campo para conquistar o título da Taça da Diversidade. João Daniel foi fundamental na campanha vitoriosa com um gol e três assistências. Em seis jogos, a equipe teve uma derrota, quatro vitórias e um empate. “Ele joga muito. Temos dois grupos de WhatsApp. Um chamado portaria, que é para os que vem só para o lazer e o outro oficial para os que competem. Quando ele participou da primeira vez, já puxamos para o nosso grupo principal”, comentou o fundador do time.

E nesse universo, onde João segue na luta para superar a depressão, o futsal do T-Mosqueteiros o coloca como uma pessoa especial, digna do respeito que a sociedade deveria ter por toda e qualquer minoria.

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