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Cultura

Um estudo sobre a resiliência feminina

Por Agência Estado

19 de janeiro de 2021, às 07h50 • Última atualização em 19 de janeiro de 2021, às 09h57

Chancelado com o selo de Cannes e tratado como obra-prima em sua passagem pelos festivais de Toronto – onde recebeu o Prêmio da Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica – e de San Sebastián – do qual saiu com a Concha de Ouro e os troféus de melhor direção e de melhor roteiro -, Beginning (Dasatskisi) transformou a estreante em longas-metragens Dea Kulumbegashvili, diretora georgiana de 35 anos, em uma sensação na seara autoral do cinema.

Não por acaso, a plataforma digital que mais aposta em narrativas de risco estético, a Mubi – pautada por uma curadoria coalhada de títulos experimentais, indo de Wim Wenders a Jia Zhangke -, resolveu apostar na potência desse estudo sobre resiliência feminina, e lançá-lo, via web, com exclusividade. Sem passar por salas de exibição comerciais, o longa entra na grade do www.mubi.com no dia 29 de janeiro, inclusive no Brasil. A estreia na internet coincide com a campanha da Georgia – nação reconhecida no audiovisual por ter cineastas autorais como Mikhail Kalatozov, ganhador da Palma de Ouro, em 1958, por Quando Voam as Cegonhas; e Serguei Paradjanov, do premiado A Lenda da Fortaleza Suram – para emplacar Dea entre os concorrentes ao Oscar. Tendo só curtas em seu currículo como realizadora, ela recebeu o prêmio máximo de San Sebastián por seu exótico estudo da luta de uma mulher para não ser esmagada pela vaidade e pela libido dos homens.

Presidente do júri do evento espanhol, o cineasta italiano Luca Guadagnino (de Me Chame Pelo Seu Nome) definiu o drama pilotado por ela – cujo foco é uma comunidade de Testemunhas de Jeová – como sendo “uma revelação, uma experiência cinemática das mais autênticas”.

“O cinema nos possibilita uma relação quase instintiva com o que existe de misterioso na natureza humana. E este filme é uma tentativa de modelar o mistério, a partir da reflexão sobre a opressão. Tive uma colega de classe que era Testemunha de Jeová aqui e ela vivia sempre num certo ostracismo pela maneira como essa prática religiosa era encarada na Geórgia como algo novo. Aqui, durante o governo soviético, muitas igrejas e templos viraram cinemas”, disse Dea ao Estadão em entrevista via Zoom, falando da opção por lançar uma experiência cinemática tão potente online, via Mubi. “O cinema, como mídia física, está mudando num momento em que somos rodeados por imagens. É curioso estar num espaço que congrega pessoas num outro ambiente, o da rede. Pensei esse filme para a tela grande, mas é interessante entender a experiência de vivenciá-lo numa plataforma digital.”

Suas vitórias internacionais com Beginning, levaram a realizadora a integrar o júri da versão pocket de Cannes, realizada em outubro, onde só premiaram curtas. “O que me levou a fazer esse filme era falar de uma mulher que, social e dramaturgicamente, fosse encarada como uma figura secundária no arranjo das representações de um mundo onde ela foi confinada ao rótulo de ‘a esposa do pastor’ e nada mais. Perceber que as mulheres podem ser esnobadas assim me traz raiva e me abre a necessidade de querer retratar essa pessoa por um prisma não convencional”, afirmou Dea ao Estadão, em San Sebastián, referindo-se a Yana, papel que deu mais um prêmio a Beginning, na Espanha: o troféu de melhor atriz, confiado a Ia Sukhitashvili. “A vida em sociedade, tal qual ela deveria ser, para alcançar alguma harmonia, pressupõe que olhemos para o próximo. O que eu tento nesse filme é levar a plateia a olhar para Yana e entender quem ela é.”

Na trama escrita por Dea e Rati Oneli, coproduzida pelo realizador mexicano Carlos Reygadas (de Luz Silenciosa), Yana é uma atriz que não teve sucesso em sua carreira nos palcos – ou não teve chances de apostar no teatro, com a liberdade necessária. Longe do teatro, ela casou com um sacerdote e teve um filho, que está à beira de adolescer. O templo deles, na cidade de Lagodekhi, é incendiado por coquetéis Molotov nos primeiros minutos de Beginning, em um dos planos longuíssimos em que a câmera pouco se mexe, deixando personagens importantes fora de quadro, para entender as reações de Yana à brutalidade que lhe é imposta por múltiplos homens, alheios a seus sentimentos. “Cada personagem tem uma dor interna, mesmo aqueles que explicitamente associamos a uma ideia de maldade. Contudo, essa ideia não passa pela representação metafísica de Bem e de Mal. Não é isso que me interessa, assim como não dá para dizer que fiz um filme sobre religião. Há, sim, uma prática religiosa ali. Mas eu não me atenho a suas ideologias e, sim, às dinâmicas de convivência de seus praticantes. Ninguém vê quem Yana realmente é nessas práticas”, diz Dea, que conversou com Reygadas, vencedor do prêmio de direção em Cannes, em 2012, por Post Tenebras Lux, acerca de suas escolhas narrativas, consideradas radicais. “Carlos me fez ver que o ponto central do filme não é a forma, nem a estilização, mas, sim, a atenção à condição humana.”

Situada na Eurásia, na região do Cáucaso, com 69.700 km² e 3,7 milhões de habitantes, a Geórgia viu, em seus dias de integrante da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), uma outra mulher cineasta atrair as atenções da cinefilia global: Nutsa Gogoberidze (1902-1966), conhecida por longas como Bulba (1930). Dea não se vê como parte dessa tradição, não por desdém ao passado, mas por enxergar que o cinema de sua pátria goza de pluralidade.

Conhecida em festivais pelos curtas-metragens Invisible Spaces (2014) e Léthé (2016), ela diz que seus conterrâneos têm autonomia política e meios para expressar suas ideias com absoluta liberdade. “Todo mundo que faz cinema na Geórgia tem uma voz própria, o que estimulou o surgimento de uma geração de jovens talentos forte”, conta a diretora. “Eu não busco ter um estilo próprio, conscientemente, porque acho que cada filme se impõe como uma aventura particular, desenhando-se como um ente que requer uma identidade única. Cada filme é uma singularidade. Tenho já um novo projeto em mente e não o vejo como algo próximo de Beginning, e, sim, como sendo uma expressão nova, que vem de mim”, acrescenta.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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