Cultura
‘Tentei ver além do crime bárbaro’, diz diretora de série sobre Elize Matsunaga
Produção da Netflix conta a história do assassinato do empresário Marcos Matsunaga, herdeiro da indústria alimentícia Yoki
Por Agência Estado
09 de julho de 2021, às 08h55 • Última atualização em 09 de julho de 2021, às 08h56
Link da matéria: https://liberal.com.br/cultura/tentei-ver-alem-do-crime-barbaro-diz-diretora-de-serie-sobre-elize-matsunaga-2-1560123/
O único quadro que o pintor italiano Caravaggio (1571-1610), gênio do tenebrismo, da luz e da sombra, da maldade e da bondade humana, assinou foi A Decapitação de São João Batista, pintado por ele em 1608, sob encomenda da igreja católica.
Na pintura, o santo retratado, que, segundo o catolicismo, foi o responsável pelo batismo de Jesus, está com as mãos amarradas para trás e o corpo quase nu. Do ferimento de seu pescoço, escorre o sangue causado pelo corte da espada – é bem abaixo do vermelhovivo que o pintor assina a tela. Ao lado, Salomé espera a cabeça da vítima para entregá-la ao rei Herodes, a quem ele havia acusado de infidelidade, em uma bandeja de ouro. Outras obras célebres do artista são Davi com a Cabeça de Golias e Medusa Murtola.
“Caravaggio é meu artista favorito”, diz Elize Matsunaga, no primeiro dos quatro episódios da série documental Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime, que estreou na Netflix nesta quinta (8), em 190 países. Dirigida por Eliza Capai, com produção da Boutique Filmes, a série conta a história do assassinato do empresário Marcos Matsunaga, herdeiro da indústria alimentícia Yoki, cometido por Elize em 19 de maio de 2012.
Elize, ré confessa, matou o marido com um tiro na cabeça no apartamento em que viviam, na zona oeste de São Paulo. Horas depois, esquartejou o corpo e abandonou os pedaços em diferentes pontos de uma estrada próxima à cidade de São Paulo. O motivo, segundo Elize reafirma na série, foi a descoberta de uma traição, dias antes do crime, e as ameaças constantes que ela sofria por parte do empresário, sobretudo a que se referia à única filha do casal, então com 1 ano e sete meses de idade.
Com quase quatro horas de duração, somando todos os episódios, a série ouve a versão de Elize, em sua primeira entrevista após a prisão, que a apresenta de maneira quase narrada, com pequenas alterações no tom de fala – um desses momentos é quando, justamente, mostra sua preferência por Caravaggio.
Em outro, fala com empolgação sobre suas habilidades na caça de animais silvestres, que praticava ao lado do marido – o casal tinha um arsenal de 33 armas em casa. “Depois que o animal é abatido, você precisa tirá-lo da mata e levá-lo para outro local”, conta. “Eu tenho um troféu de um veadinho abatido que comemos o lombinho dele com molho de ervas. Uma delícia. Recomendo”, diz, logo em seguida.
O terceiro ponto de emoção ocorre quando Elize fala da filha, que não vê desde que foi presa, logo após o crime. “Eu escutava a torneira gotejar e só pensava na minha filha”, diz, sobre os primeiros dias na prisão. É por ela que Elize afirma guardar um dos pontos jamais esclarecidos sobre o crime. “Eu tentei não errar, mas não consegui”, fala, em outro trecho.
Além de Elize, a série ouve as versões de advogados de defesa e acusação, peritos, delegado e promotor do caso, jornalistas, amigos de Matsunaga – os familiares da vítima não deram depoimento – e parentes da presa. Ao todo, foram 20 entrevistados.
A estrutura básica da série é semelhante à de outros dois recentes lançamentos do gênero true crime, com depoimentos entrecortados por imagens de arquivos e cenas exibidas por telejornais. Entre os nacionais que estrearam no streaming recentemente estão o Caso Evandro e Em Nome de Deus, sobre o médium João de Deus, ambos disponíveis na Globoplay.
Além de apresentar a versão de Elize, o programa também narra o embate da acusação e da defesa durante o julgamento e a tentativa – que resultou eficaz – de livrar a ré das duas agravantes das quais foi acusada: motivo torpe e meio cruel.
Ao final, Elize foi condenada a pouco mais de 19 anos de detenção em regime fechado. Em 2019, obteve a progressão para o regime semiaberto, com direito às chamadas saídas temporárias. Em duas delas, a diretora captou 21 horas de depoimento de sua personagem principal – além de um encontro de Elize com a avó e um passeio com sua advogada.
Paralelamente a isso, a diretora Eliza Capai percorre questões que enxergou gravitar em torno do crime, como o machismo – puxado pelo fato de Elize ter sido garota de programa -, a tentativa de desqualificar a vítima, exploração do caso em programas policiais e a replicação da violência na sociedade.
“Eu queria refletir por que esses crimes ocorrem e como a sociedade e a mídia lidam com eles. O desafio foi fazer uma edição que não esbarrasse no sensacionalismo e que tratasse o caso com empatia e curiosidade a fim de entender a violência de uma forma mais complexa”, diz Eliza, diretora. “Tentei ver além do crime bárbaro”, completa.
Esse olhar também permite que a diretora dê alguns respiros poéticos na série, sobretudo os que tentam humanizar a Elize entre revelações chocantes e depoimentos conflitantes. O documentário tem roteiro de Diana Golts, colaboração da jornalista investigativa Thaís Nunes, que negociou, por 18 meses, a participação de Elize na série, além da consultoria da criminóloga e escritora Ilana Casoy.