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Cultura

Ruth Escobar e suas faces diversas

Por Agência Estado

31 de março de 2021, às 08h00 • Última atualização em 31 de março de 2021, às 10h04

Artista com atuação em diversas áreas, da criação à produção, da encenação à ação política, Ruth Escobar (1935-2017) não desconhecia que era uma mulher multifacetada e, por isso, diante de novos colaboradores de suas diversas atividades, ela logo avisava: “Sabe todas aquelas histórias que você já ouviu sobre mim? Pois!, metade é verdade”, acentuando o sotaque português que nunca lhe abandonou.

Foi, portanto, esse desafio que o jornalista, editor e pesquisador teatral Alvaro Machado enfrentou durante quatro anos e meio, quando avaliou o imenso acervo de documentos e fotos criado e mantido por Ruth em sua última residência, para escrever (…) Metade é Verdade – Ruth Escobar, lançado agora pela Edições Sesc. Trata-se de uma obra de fôlego, uma bem apurada biografia da portuguesa, que iniciou sua trajetória no Brasil em 1953 como repórter, editora de revista e ativista cultural até que, seis anos depois, se realizasse como atriz e produtora cultural. E, a partir daí, e por pelo menos 40 anos, a trajetória de Ruth se confundiu com momentos marcantes da cena teatral brasileira.

Em 1963, por exemplo, inaugurou o próprio teatro, no bairro do Bexiga, graças ao apoio da colônia portuguesa. Ao longo das décadas seguintes, o espaço fez história ao abrigar montagens marcantes como O Balcão, de Jean Genet, em 1969, em que o diretor argentino Victor Garcia (1934-1982) praticamente decretou a maioridade do teatro de vanguarda no Brasil. O Teatro Ruth Escobar era também palco da resistência à ditadura militar a ponto de, em 1968, ao final da sessão de 18 de julho da peça Roda Viva, de Chico Buarque, integrantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), que estavam na última fila, nem esperaram a saída dos últimos espectadores para invadir os camarins e agredir todo o elenco, além de destruir equipamentos.

“Como estratégia de resistência, Roda Viva voltou a ser apresentado já na sexta-feira 19 de julho”, escreve Machado. “Transbordando para os corredores, o público aplaudia freneticamente ao final de cada cena, sob os olhares de vinte agentes da Polícia Federal e do Dops armados de metralhadoras, que passaram a fazer segurança da casa.” Marília Pêra exibia hematomas e Rodrigo Santiago tinha o braço apoiado em uma tipoia, enquanto flores eram arremessadas ao palco.

Uma época de desafios artísticos e enfrentamentos políticos, normalmente um em confronto com o outro. Para a montagem de O Balcão, por exemplo, Ruth ambicionava trazer Jorge Lavelli e Peter Brook, mas, com a impossibilidade, concentrou-se no trabalho de Victor Garcia, que acabara de realizar uma memorável montagem de Cemitério de Automóveis.
Assim, Garcia planejou como cenário uma estrutura cilíndrica metálica que tivesse a mesma altura da sala Gil Vicente, no Teatro Ruth Escobar, ou seja, 28 metros do porão ao teto – era uma espécie de gaiola gigantesca.

“Iniciou-se, assim, a demolição da maior parte do interior do prédio construído apenas cinco anos antes, para surgir dali o pantagruélico cenário jamais ousado, espécie de paralelo em ferro e concreto às razias que a produtora experimentava tanto em seu casamento à beira da conflagração como na trajetória profissional solavancada por sucessão de detenções, interrogatórios policiais e engalfinhamentos com a Censura, além de falências financeiras”, escreve o biógrafo.

A reação ao espetáculo foi contundente: temporada de 20 meses com sucesso de público e crítica, inclusive do próprio Jean Genet, que veio a São Paulo e considerou aquela a melhor montagem de sua peça. Isso fixou também o Teatro Ruth Escobar como epicentro de montagens inovadoras e sua proprietária, como produtora de visão cultural.

Na década seguinte, Ruth buscou o diálogo com outras dramaturgias no exterior, justamente em um momento em que a sociedade brasileira vivia sob rígidas normas de conduta. Em 1974, ela organizou o primeiro Festival Internacional de Teatro, com espetáculos de vanguarda com assinatura de Jerzy Grotowski e Bob Wilson, dois dos maiores diretores do século 20. De Wilson, aliás, Ruth apresentou uma megaópera de doze horas de duração, A Vida e a Época de Dave Clark, montagem monumental com mais de cem intérpretes e figurantes brasileiros e estrangeiros, e cuja récita completa, com todos os atos em sequência, aconteceu entre as 19h e as 7h da manhã seguinte.

O festival teve ainda outras sete edições, de forma irregular, até 1999. E sempre criou fortes raízes na cultura nacional – em 1978, quatro anos depois da primeira edição do evento, o diretor Antunes Filho estreou o mais impactante espetáculo de sua carreira, Macunaíma, no qual se observaram alguns vestígios de criadores como a plasticidade de Bob Wilson.

Ruth Escobar era uma mulher também essencialmente política, o que resultou em sua eleição como deputada estadual em duas gestões. Controversa, não poupava esforços para conquistar o que pretendia, o que resultou em inimizades e até processos jurídicos. Com sua personalidade forte, até hoje mantém admiradores e desafetos.

METADE É VERDADE – RUTH ESCOBAR
Autor: Álvaro Machado
Editora: Edições Sesc SP (624 págs.,R$ 140)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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