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Cultura

Osesp em temporada democrática

Por Agência Estado

30 de novembro de 2020, às 07h55 • Última atualização em 30 de novembro de 2020, às 11h45

Depois de nove meses de pandemia, finalmente a Osesp fez a coisa certa, como diria Spike Lee: resolveu transmitir e deixar disponíveis no seu portal os concertos, “daqui até o final do ano”. Pena que só faltem quatro semanas para o término de 2020. Uma das quatro repetições de cada semana será transmitida “gratuitamente”.

E “inaugurou” em grande estilo a nova postura nos concertos desta semana, transmitindo o concerto da sexta-feira, 27 (acesse em youtube.com/watch?v=Lu2-6qWMquI). Marin Alsop, que comandou a Osesp de 2012 a 2019, regeu um concerto bastante interessante, em que a motivação política povoou as notas emitidas pelos músicos da Osesp: a Abertura Leonora no. 3, de Beethoven, e a sinfonia Matias, o Pintor (1934), de Paul Hindemith. Destoou a Sinfonia Clássica, escrita por Prokofiev quase como um exercício de estilo – genial, diga-se de passagem – em 1917, o ano da Revolução Russa, mas sem nada a ver com ela.

Leonora, o personagem feminino que se veste de homem e adota o nome Fidelio para libertar seu amado injustamente preso por motivos políticos, rendeu várias aberturas a Beethoven, então com política nas veias, nos primeiros seis ou sete anos do século 19.

Sua única ópera é uma obra-prima de música política. E esta abertura, particularmente, é de uma força dramática absolutamente incomum naqueles anos de 1806. Senti-me de volta ao passado, quando Alsop repetidas vezes regeu de modo linear obras que não merecem tal destino. Foi um pouco o caso desta pálida execução da Leonora 3. Prokofiev teve melhor destino nas mãos de Alsop e da Osesp, na gravação que ambos fizeram para a Naxos anos atrás.

De fato, é difícil para os músicos terem de se reinventar espacialmente. Como explicar, então, que tenham se transfigurado na emocionante execução da sinfonia Matias, o Pintor, uma das obras mais reputadas de Hindemith? Talvez pela carga emocional e de caráter político da obra, escrita num momento particularmente dramático do planeta, quando o nazismo já consolidado começava a moldar a arte e a cultura alemãs a seus despropósitos e desvarios. Hindemith flertou com o regime, buscou aproveitar-se para se impor como o grande nome da música alemã. Atitude recorrente entre os músicos em situações de risco e infelizmente frequente também por aqui. Frustrou-se porque seu passado experimental na República de Weimar, nos anos 1920, fez dele adversário natural do nazismo.

Hindemith só se indignou de verdade quando teve proibida no país a execução de boa parte de suas obras e foi acusado de “bolchevismo cultural”. Marco Aurélio Scarpinella Bueno conta esta história nos detalhes em seu ótimo livro sobre o compositor. E foi buscar no pintor gótico judeu Mathias Niethart, que adotou o sobrenome Grünewald, inspiração para sua sinfonia em três partes calcadas no retábulo de Iselheim celebrando a Guerra dos Camponeses de 1524. Desiludido, o pintor deixou a arte e transformou-se em moleiro até o fim da vida. Isso bateu fundo em Hindemith. Ele se fez, segundo Scarpinella, a seguinte pergunta: “Qual a atitude mais adequada de um artista em épocas de incertezas políticas?”

Não deu uma resposta à altura da questão. Nem resistiu nem aderiu claramente. Sua dubiedade custou-lhe caro e jogou-o no mesmo funesto cesto de Furtwängler (queridinho de Hitler), Karajan (teve carteirinha de SS) e Richard Strauss (teve o ego afagado sendo nomeado Presidente da Câmara de Música do III Reich). Todos posteriormente tentaram desvencilhar-se destes pecadilhos. Furtwängler estreou a Sinfonia com a Filarmônica de Berlim em 1934. Foi demitido do cargo por causa disso, mas manteve outros cargos na Alemanha.

Nenhum deles, porém, tinha as armas de que dispunha Hindemith: transformar em música da melhor qualidade uma autocrítica que impacta mesmo quem não conhece estes detalhes sobre Matias, o Pintor. O movimento intermediário, por exemplo, Descida ao Túmulo, não tem nada de heroico, é pura resignação (belo solo do oboísta Arcádio Minczuk). O primeiro, Concerto dos Anjos, parece uma espécie de prefiguração positiva do que seria possível fazer no Reich. Sabe-se que Hindemith propôs e polianamente sonhou com um plano detalhado de reformulação da vida musical alemã – tudo isso além do tributo declarado a Grünewald.

Por isso ele inverte a ordem destes temas na ópera de mesmo título: o finale, Tentação de Santo Antão, lida com os demônios. O resultado é impactante, mas surpreendentemente conservador, música diatônica, tonal – guinada radical de quem ousara muito anteriormente. A Osesp soube transmitir estas ambivalências que só a música pode transmitir, para além de palavras. Um raro momento de brilho da Osesp em 2020.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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