28 de março de 2024 Atualizado 20:58

8 de Agosto de 2019 Grupo Liberal Atualizado 13:56
MENU

Publicidade

Compartilhe

Música

O tiro que não saiu

Por Agência Estado

20 de janeiro de 2020, às 07h00 • Última atualização em 27 de abril de 2020, às 11h18

Jimi Hendrix e Zé Geraldo se cruzaram pela primeira vez quando o primeiro, já morto, revirou tudo o que havia dentro do segundo, um garoto que só queria ser jogador de futebol. Zé fazia fisioterapia em Santos para se recuperar de um acidente de ônibus quando alguns amigos da banda de rock Blown Up chegaram com um LP de Hendrix. Foi o primeiro golpe. O segundo seria anos mais tarde, já morando na Serra da Cantareira, em São Paulo, quando um amigo mandou um link com uma formação estelar, David Gilmour na guitarra e Seal no vocal, cantando Hey Joe. Zé foi buscar a tradução pensando em cantá-la em seus shows – afinal, em vez de jogador ele havia se tornado cantor – e se deparou com um dilema.

Hendrix canta em sua gravação de 1967, no álbum Are You Experienced, algo que o faria um alvo fácil nos tiroteios de 2020. A letra que Billy Roberts fez em 1962 está dentro de uma cena de dois tempos. Um homem, Joe, está primeiro com uma arma na mão prestes a dar uns tiros em sua mulher. Afinal, ele a pegou paquerando outro homem na noite. Joe comete o assassinato e o narrador, Hendrix ou quem quer que grave a música, diz: “Tudo bem, atire nela mais uma vez, está perdoado, baby”.

Hey Joe, como tudo o que Hendrix gravou, acabou ficando para a história mais pelos solos de guitarra do que por alguma suposta mensagem, mas isso é com Hendrix. Zé Geraldo, com a força que sempre carrega nas letras, entendeu que, para gravar a música, deveria mudá-la, mexer nas escrituras sagradas.

Obstinado em mudar a história de Hey Joe, fez o corajoso pedido ao escritório que cuida dos direitos de Hendrix nos Estados Unidos e sentiu que a batalha seria longa. Ninguém sequer respondeu ao pedido por quase dois anos.

Algum tempo depois, os representantes pediram músicas de Zé traduzidas para o inglês para começar a escanear o brasileiro ousado. Zé Geraldo: homem de 75 anos nascido na pequena Rodeiro, no interior de Minas Gerais, vivido depois em Governador Valadares e, desde a adolescência, em São Paulo. Um roqueiro que decidiu viver das liberdades daquilo que canta em vez de se seguir uma busca para se moldar a um formato supostamente mais promissor. O compositor que chegou a oferecer Senhorita, sua música mais regravada até hoje, a Chitãozinho & Xororó, mas que ouviu de um produtor ligado aos irmãos sertanejos o seguinte: “Cara, suas músicas são muito complicadas”. Esse era Zé Geraldo.

A transformação da história de Hey Joe foi radical. Joe simplesmente não mataria mais a mulher e ainda ganharia conselhos do narrador, ou seja, Zé Geraldo: “Hey Zé! O que cê tá fazendo com esse três oitão carregado, preparado para sacar e atirar? Eu sei, é grande a dor de perder o seu amor para um ex-amigo, Zé. Você é jovem, outros amores hão de vir. Larga essa besteira de entrar pro crime, Zé.” A voz de Zé, ou de Joe, é sublimada na nova versão, e o que fica é só a do narrador. “Se a maioridade for reduzida, você vai estragar a sua vida na prisão. A gente sabe bem, cadeia não recupera ninguém.”

Zé seguiu com um disco quase pronto, e nada da resposta dos norte-americanos. Ele podia tocar a música em shows, mas, diante do silêncio dos representantes de Hendrix, jamais gravá-la. Uma das filhas de Zé, Gija, advogada das causas do pai, ganhou o reforço de Cris Falcão, então diretora de uma editora, e a pressão aos gringos aumentou. Até que o telefone de Zé tocou. “Pai, conseguimos”, era Gija. Dois anos depois do pedido, Zé ganhou permissão para cantar sua Hey Joe com final feliz. Só teria de abrir mão dos direitos de versionista, uma porcentagem ínfima à qual o criador da versão, em geral, tem direito.

Com a música em mãos, Zé lançou o disco. Hey Zé! foi maturado em mais de três anos, e o resultado é uma coleção de canções muitas vezes pessoais, confessionais, amorosamente domésticas. Depois de abrir com Hey Zé!, vem uma preciosidade, talvez a maior do álbum, chamada Do Outro Lado da Montanha, com o violão de 12 de Francis Rosa. Francis é uma descoberta de Zé e com quem já prepara um disco, O Poeta e o Violeiro.

O folk rock é confirmado por todo o álbum, um gênero muito tocado sobretudo nos anos 1970, reforçado por Raul Seixas, Sá, Rodrix & Guarabyra e Renato Teixeira. Bicho Grilo Artesão fala aos cantores de rua; A Canção que Vem do Céu é a ternura que entrega ao neto Gael; O Chão do Nosso Chão é de Renato Teixeira, com participação do Folk na Kombi. Fica tudo muito familiar, e a sensação é a de se ouvir uma coleção de músicas que já se conhece, talvez pela rapidez com que elas se comunicam. É preciso falar da banda, gente que traduz o espírito de Zé com um som de rock 70 irreprodutível justamente por não ter acabamento. Carneiro Sândalo na bateria, Jean Trad na guitarra, Carlito Rodrigues no baixo. Não se sabe do paradeiro de Joe, mas Hendrix, bem provável, ficaria feliz.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Publicidade