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44ª Mostra

Lolita distópica em filme de ‘pedofilia techno’

Por Agência Estado

26 de outubro de 2020, às 07h40 • Última atualização em 26 de outubro de 2020, às 09h41

O início de “O Problema de Nascer”, filme da austríaca Sandra Wollner que é um dos destaques da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, logo se revela enganador – em uma casa futurista no meio do campo, um homem (Dominik Warta) vive com uma menina chamada Elli (Lena Watson), que o trata por pai. Tardes na piscina, noites com música clássica, o clima é bucólico, mas logo surge o incômodo, com os carinhos íntimos praticados pelo pai e a pose sexy da menina ao vestir uma roupa nova.

Em poucos minutos, o espectador descobre que Elli não é humana, mas uma androide construída como uma réplica da filha daquele homem, desaparecida anos antes. A descoberta é sutil e vem nos detalhes: primeiro, o som típico de computador que emana da menina; depois, sua face quase imutável – Elli é interpretada por uma atriz mirim de 10 anos, disfarçada com máscaras faciais de silicone e perucas, para evitar que sua identidade seja revelada.

Em seu conto de ficção científica distópico, Sandra Wollner aposta na confiança que a humanidade deposita na tecnologia para combater a solidão estrutural da existência moderna. O problema é que a relação fetichista a la Lolita de pai e “filha” causou furor em diversas mostras pelo mundo.

O Festival Internacional de Cinema de Melbourne, por exemplo, tirou o título de sua programação por acreditar que o longa “normaliza o interesse sexual nas crianças”. Mesmo assim, O Problema de Nascer estreou no Festival de Cinema de Berlim, em fevereiro, quando ganhou um prêmio na seção Encontros dedicada a obras de conteúdo mais arrojado. A condecoração, no entanto, não evitou determinada críticas na imprensa, que o taxaram de um “filme de pedofilia androide”.

O que mais incomodou determinada parcela da audiência foi a primeira metade do filme, quando Elli vive uma relação dúbia com seu pai. Mas as incertezas pontuam o filme, pois não se sabe se aquele pai é o criador do androide ou apenas o proprietário, um homem infeliz que busca minimizar a dor da perda da filha real.

A função de consolo da menina máquina é reforçada quando Elli parte em uma inesperada viagem sem rumo (provocando nova dor de perda em seu “pai”) até chegar à casa de uma senhora, levada pelo filho. Ali, o androide ganha novas feições, personalizado de acordo com as necessidades emocionais daquela mulher, que sente a falta de um filho. Novamente, a relação entre máquina e humano não é plenamente realizada.

O roteiro sugere semelhanças com longas como AI – Inteligência Artificial (2001), que Steven Spielberg dirigiu a partir do conto de Brian Aldiss; ou Ex_Machina: Instinto Artificial, escrito e dirigido por Alex Garland, em 2014.

Em uma entrevista à revista Variety, concedida logo depois da exibição do longa em Berlim, Sandra afastou qualquer influência. “Foi Roderick Warich, meu coautor, quem teve a ideia de fazer um filme sobre um androide infantil e achei muito interessante e intrigante contar a história do ponto de vista desse androide que não se importa, que não quer nada além do que está programado para querer”, afirmou. “Para mim, o filme é mais sobre a virtualidade de nossas próprias conversas, da nossa realidade e que como estamos por conta própria, após sofrermos perdas.”

Para a cineasta, seu longa trata essencialmente de uma questão delicada: o fato de como as pessoas estão se tornando cada vez mais virtuais em seus relacionamentos, o que acentua, na verdade, o isolamento em que todos já vivem.

Além da solidão, o filme trata ainda da incapacidade do ser humano em lidar com a morte – ainda que, em diversas civilizações, o fato seja festejado e não lamentado.

A dor do pai de Elli e da mãe que lamenta a falta de seu caçula é provocada pela incapacidade de se lidar com o vazio deixado por essas ausências. E, ainda mais triste, nem as máquinas conseguem reparar as perdas inevitáveis.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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