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Literatura

Memória preservada em ‘Arquivo das Crianças Perdidas’

Por Agência Estado

07 de junho de 2019, às 07h00 • Última atualização em 27 de abril de 2020, às 11h11

Uma família prestes a se desintegrar entra em um carro em Nova York para cruzar os Estados Unidos até o Arizona, na fronteira com o México. O trabalho que o casal fazia – registrar o som de todas as línguas faladas na cidade – chegou ao fim e ele decide investir em um projeto pessoal: estar onde os últimos povos livres em todo o continente americano viveram antes de se renderem e gravar os ecos de sua passagem por ali.

Ao seu lado, sua mulher nos últimos quatro anos – e a primeira narradora desta história. No banco de trás, o filho dele, de 10, e a filha dela, de 5. No porta-malas, 7 caixas de arquivo: 4 do pai, já cheias; uma da mãe, com alguns materiais para a pesquisa que fará no caminho sobre as crianças que tentam atravessar a fronteira do México para os Estados Unidos e desaparecem; e uma para cada criança, que ao longo da viagem elas decidirão como usá-las. No ar, o silêncio que cresce entre o casal, as histórias que os pais contam sobre apaches e crianças imigrantes e o som dos meninos brincando.

Esse é, basicamente, o enredo de Arquivo das Crianças Perdidas, romance de Valeria Luiselli que está chegando às livrarias brasileiras. Um livro que tem sido visto como uma obra sobre imigração, mas, embora este seja um assunto importante nesta ficção, e um tema caro para a autora que nasceu no México, cresceu pelo mundo (seu pai é diplomata) e vive em Nova York, Arquivo das Crianças Perdidas é uma história sensível e comovente sobre família, vínculo e cumplicidade, sobre estar junto e sozinho ao mesmo tempo, sobre querer estar só e sobre encontrar sentido no outro. E é, além de tudo, sobre encontrar a forma exata de contar uma história e registrá-la.

Em entrevista por telefone, Valeria, de 35 anos, conta que tem pensado muito na narrativa como uma troca intergeracional de diferentes versões do mundo. “Eu queria escrever um romance tentando pensar como a próxima geração vai começar a articular esse tempo político muito difícil em que estamos entrando. E como ela, em oposição às gerações mais antigas, pode dar novos elementos às histórias para a geração seguinte e como essa geração vai recombinar e devolver essa história ao mundo”, diz.

O livro é aberto pela voz da mãe, uma mulher às voltas com suas dúvidas e dores, e uma das passagens mais delicadas, e que demonstra essa preocupação da autora com a transmissão de uma história, é quando ela e o menino (ninguém tem nome) testemunham a partida de um pequeno avião cheio de crianças capturadas na fronteira e seu desaparecimento no céu. O que ela faz é se certificar que o menino saiba que ele não estava sozinho naquele momento desolador.

O menino, aliás, é o outro narrador da história e seu relato, oral e visual, com a Polaroid que ganhou, foi a forma que ele encontrou de garantir que a irmã que lhe foi dada, e que em breve partirá com a mãe, saiba tudo o que viram e viveram naquelas semanas na estrada e pelo deserto, e tudo o que ouviram sobre indígenas e outras crianças. Isso porque ele ouviu do pediatra que as crianças só passam a ter memórias a partir dos 6 anos. É comovente ver sua preocupação com a fixação da história dos dois e o vínculo entre eles.

São todos personagens fortes – exceto, provavelmente de propósito, o homem. E a autora sente falta deles. “Ainda estou em luto pelos personagens, especialmente as crianças. Eu realmente vivi com essas pessoas nos cinco anos em que escrevi esse livro. Sinto falta da companhia do menino e da menina. Foi um romance que dominou minha cabeça e minha alma por muito tempo”, conta.

Outra narrativa que permeia a obra é o livro Elegia das Crianças Perdidas, escrito por Valeria para ser incluído no romance e creditado a uma autora fictícia – uma espécie de A Cruzada das Crianças -, que acompanha a família em sua jornada por um país que vai se revelando deserto e mais hostil.

Arquivo das Crianças Perdidas não é sobre os pequenos refugiados presos ao conseguirem ultrapassar a fronteira, desaparecidos depois de chegarem aos Estados Unidos ou mortos pelo caminho, mas a questão está lá – bem como as críticas às políticas migratórias dos Estados Unidos. Há uma tensão política, que só não é maior porque a autora decidiu fazer uma pausa na escrita quando percebeu que sua frustração, raiva e revolta estavam entrando equivocadamente em seu romance. À época, ela traduzia a história de crianças em situação legal complicada e as ajudava a encontrar um advogado.

“Eu estava, ao mesmo tempo, bagunçando com o romance e não tratando a questão como eu deveria. Parei e escrevi um ensaio, Tell me How it Ends. E então pude voltar ao romance e pensar nele com mais liberdade. O romance é um gênero híbrido e com múltiplas camadas, que me permite pensar em coisas que não cabem na forma da não ficção de pensar esse tipo de assunto”, conta. E completa: “Eu pude dar um passo para trás e refletir sobre o valor da arte na hora de escrever sobre violência política. E nos meios com que podemos abordar questões políticas na ficção. Mas, sim, esse é um livro sobre contar história, léxico familiar e conexões familiares. E sobre a nossa recusa e tentativa inconsciente de chegar ao outro por meio de uma história”.

ARQUIVO DAS CRIANÇAS PERDIDAS
Autora: Valeria Luiselli
Trad.: Renato Marques
Editora: Companhia das Letras
(424 págs.; R$ 74,90; R$ 52,43 o e-book)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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