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Literatura

Jogo de aparências

Por Agência Estado

20 de julho de 2019, às 07h00 • Última atualização em 27 de abril de 2020, às 11h11

Milhares de quilômetros separam Cancún, festejada cidade do balneário mexicano, da Barra da Tijuca, elegante bairro carioca. Mas, na difícil formação do jovem Joel, a distância é quase inexistente. Joel é o protagonista de Cancún, primeiro romance de Miguel Del Castillo, que já havia publicado contos em Restinga – as duas obras são editadas pela Companhia das Letras. A narrativa se divide em oito capítulos, que se alternam na descrição de dois momentos vitais na vida do rapaz: quando ele está com 12 anos e duas décadas depois, quando está prestes a ser pai.

Os mistérios da paternidade unem as duas épocas. Adolescente, Joel vive nos condomínios e shoppings da Barra, local onde a felicidade é estilizada – tornou-se famosa a réplica de gosto duvidoso da Estátua da Liberdade, na entrada de um centro comercial. Já o pai vive de negócios nebulosos em Cancún, cidade repaginada para atrair mais turistas. Eis aí o primeiro ponto que aproxima Cancún da Barra: são lugares ‘criados’ com a função de dar prazer
E, como uma moeda, que tem duas faces, os dois lugares têm também seu lado B, mais sórdido, perigoso, nada glamouroso. Uma zona obscura que reflete a relação de Joel com o pai e que volta à tona quando ele, aos 32 anos, na iminência do nascimento de seu primeiro filho, decide viajar para Cancún em busca de dados que clareiem o mistério envolvendo o pai que, nessa época, já está morto.

“O interesse de Joel é comum nos homens que se tornam pais”, comenta Del Castillo, que tem dois filhos. “As dúvidas sobre a criação, ou mesmo sobre o legado que vai ser passado, convivem com sua reflexão sobre como foi a sua própria relação com seus pais.” Tal pensamento é bem expresso pelo autor ao escolher como epígrafe um trecho do livro O Africano, do francês J.-M. G. Le Clézio, que lembra que “todo ser humano é resultado de pai e mãe”.

Del Castillo trabalha com dúvidas que parecem eternas. O jovem Joel é atormentado por questionamentos sobre sua masculinidade e sobre sua fé, enquanto o personagem já adulto busca respostas para questões que, acredita, terá no futuro. Para isso, o escritor utiliza o narrador em terceira pessoa para os capítulos envolvendo o menino e em primeira pessoa, quando o tempo está avançado. “São metáforas. Quando pensa no presente, Joel usa a primeira pessoa, pois os acontecimentos estão mais próximos.”

Presença evangélica

Para combater as lacunas que surgem ao longo de sua vida (a falta de um pai mais presente, a demora da chegada da puberdade, a inabilidade em relacionamento amoroso), Joel, personagem do romance Cancún, se aproxima da religião – mais precisamente de uma igreja evangélica. Embora já frequentasse semanalmente com a mãe quando menino, é adolescente que ele sente a necessidade de participar de um grupo de jovens de denominação evangélica.

É lá que Joel encontra um pouco de consolo em relação às dúvidas sobre a relação com o pai: “Na reunião do último sábado das férias de julho, a mensagem é sobre uma oração em que Jesus chama Deus de ‘Aba’, o que, segundo o pregador, quer dizer algo como ‘paizinho’, explicitando uma relação íntima”, escreve Miguel Del Castillo, adentrando um terreno pouco explorado na literatura brasileira: oferecer uma representação dos evangélicos.

Segundo ele, a maioria dos escritores sempre preferiu ignorar a presença de personagens com algum cunho religioso – seja por opção mesmo, seja pelo fato de alguns serem ateus. “Uma das poucas exceções é Chico Buarque, em uma cena de Leite Derramado”, comenta o autor, lembrando da personagem Maria Eulália, uma convertida.

O fato de também ser evangélico permite ao escritor transitar com tranquilidade pelo discurso, o que surge para o leitor na descrição das conversas dos jovens, além de cultos e retiros. E, da mesma maneira com que um cristão tem familiaridade com, por exemplo, os rituais de uma missa, portanto dispensando descrições, Del Castillo não é didático em sua narrativa, despreocupando-se em detalhar o passo a passo de uma cerimônia.

A religião, na verdade, provoca em Joel as mesmas angústias que um rapaz de sua idade teria ao se submeter, em tenra idade, às exigências de qualquer crença. Assim, ao respeitar a “santidade” (que é não se masturbar tampouco fazer sexo antes do casamento), Joel só vê agravar seu sofrimento físico.

Trata-se de uma opção inteligente, especialmente nos dias atuais, em que a polarização política contamina outras áreas do pensamento. Momento em que também é forte a presença religiosa na forma de comando do País, o que provoca discussões acaloradas. “Estamos vivendo um momento muito maniqueísta no Brasil. Sempre que tentamos olhar uma questão a fundo, a realidade se impõe, e o livro também busca tratar disso”, comenta o escritor.

Já adulto – e agora distante da religião -, Joel encara outras questões, mas íntimas. Próximo do nascimento do filho, seu pai morre, o que levanta as diversas dúvidas que sempre deixou guardadas. Assim, disposto a encontrar as respostas (e, principalmente, conquistar a paz interior), Joel decide viajar para o México, em busca de rastros deixados pelo pai. “Esse lado da paternidade sempre me interessou”, comenta Del Castillo. “Essa condição de ser filho e ser pai, o legado que ganhamos deles e, principalmente, as histórias que os pais não nos contam.”

Esse jogo de aparências serve para, novamente, aproximar Cancún do Bairro da Tijuca, a ostentação que tenta encobrir as falhas, as verdades que não se sustentam e as certezas encobertas. “Esse momento do romance traz um olhar para o outro e também para sim mesmo. A revelação de que o que a gente viveu acaba construindo nosso perfil. Joel descobre isso no pai e percebe também em si.”

Um dos jovens talentos apontados pela revista britânica Granta em 2012, Miguel Del Castillo confirma a aposta, como apontam seus pares. “Detendo-se em temas como o percurso emocional de uma masculinidade introvertida e a difícil relação que podemos ter com as condutas censuráveis de quem mais amamos, Miguel Del Castillo conduz o leitor com firme serenidade por um relato impecavelmente estruturado, no qual a família é a expressão imperfeita e acolhedora dos mistérios da vida”, observa o também autor Daniel Galera.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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