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Cultura

Documentário mostra influência da ditadura na carreira de Pelé

"O Brasil antes de Pelé e o Brasil depois de Pelé são dois países totalmente diferentes em termos de identidade cultural e nacional", diz Tryhorn, diretor do documentário

Por Agência Estado

19 de fevereiro de 2021, às 08h00 • Última atualização em 19 de fevereiro de 2021, às 14h29

Aclamado “Rei do Futebol” e “Atleta do Século 20”, o ídolo brasileiro tinha fãs pelo mundo todo - Foto: Netflix / Divulgação

O documentário abre com clima de uma festa anunciada: os momentos que antecedem a final da Copa de 1970, no México, onde o Brasil se tornou tricampeão mundial ao golear a Itália por 4 x 1. Foi a consagração de um geração de craques, mas também a afirmação de um rei: Pelé. Mas é justamente a voz dele que se ouve, em off, fazendo uma alarmante confissão: “Naquele momento, eu não queria ser Pelé”. E é com esse enigma que começa Pelé, documentário original da Netflix, que estará disponível no streaming a partir da terça, 23.

Dirigido por David Tryhorn e Ben Nicholas, o filme se estrutura de forma a justificar tal desabafo. É justamente esse caminho o que torna esse documentário distinto dos demais: sim, são mostrados muitos gols, como não poderia ser diferente, mas a ascensão de Pelé no mundo do futebol passa a interessar ao meio político, a ponto de ele ser obrigado a rever a decisão de não mais disputar uma Copa do Mundo após o fracasso brasileiro no Mundial de 1966, na Inglaterra, e assumir a obrigação de vencer quatro anos depois, no México.

“O Brasil antes de Pelé e o Brasil depois de Pelé são dois países totalmente diferentes em termos de identidade cultural e nacional”, observa Tryhorn que, a partir do surgimento do maior jogador de futebol do mundo, traça um paralelo entre a sua trajetória e a do próprio País.

Assim, a surpreendente revelação de Pelé na Suécia, em 1958, quando o Brasil conquistou seu primeiro título, e a vitória no Chile, quatro anos depois, correspondem a uma das fases mais criativas e economicamente positivas da história brasileira – o sucesso dentro de campo encontrava reflexo fora, na sociedade.

Os ares mudam em 1964, com o golpe militar. Apesar de colecionar títulos no Santos, Pelé, que representava até então o futebol alegre e bem jogado, sai machucado no início da Copa da Inglaterra, em 1966, e o Brasil é precocemente desclassificado.

Pelé anuncia seu desejo de não mais disputar um Mundial – e essa declaração é uma das imagens raras do documentário, encontrada nos arquivos da RTP, televisão portuguesa.

O regime militar, no entanto, precisava de uma conquista mundial para consolidar a imagem de um país bem-sucedido, ainda que à base de mortes, torturas e cassação dos direitos civis. A pressão se instala na preparação para a Copa do México: comunista confesso, o técnico João Saldanha, que chegou a confrontar o presidente Emílio Garrastazu Médici (“Eu não escolho os ministros dele, e ele não escala a minha seleção”), logo é destituído e Zagallo assume, junto de uma comissão técnica formada por militares.

“A gente sabia de muitas coisas que aconteciam no País. Outras, não”, comenta Pelé, no documentário, sobre os abusos da ditadura. “Nunca fui forçado a nada”, completa ele, que decidiu voltar à seleção também para uma realização pessoal: mostrar que, aos 30 anos, ainda podia ser campeão do mundo. Nas entrelinhas, porém, fica evidente que ele sentia o peso da responsabilidade imposta pelo governo.

“O documentário talvez seja a jornada de doze anos de um garoto que ganhou uma Copa do Mundo em 1958, e depois se tornou um homem na de 1970”, observa o italiano Mateo Bini, editor do filme. “Aí você entende que, quando vence aquela Copa do Mundo, Pelé é considerado o salvador, porque é ele quem está derrotando aquele complexo.”

É nesse momento também que o espectador passa a entender o significado da frase inicial do filme, quando ele diz que não gostaria de ser Pelé naquele instante. Também se tornam compreensíveis o choro compulsivo que o domina quando se aproxima do estádio da final contra a Itália, surpreendendo os outros jogadores, e ainda os três estrondosos berros de desabafo que deu no vestiário (“Não morri, não”, relembra Rivellino), após a conquista.

A volta ao Brasil e o encontro com Médici, em Brasília, são momentos delicados do documentário. O ex-jogador Paulo César Caju analisa a cena do abraço com o presidente como um rebaixamento social. “Pelé retoma a posição do sim, senhor”, diz. Em contrapartida, Pelé assegura ter mais ajudado o Brasil com seu brilhante futebol que os políticos, “que ganham para fazer isso”. De uma certa forma, a maioria dos entrevistados para o documentário referenda isso, poupando-o de uma condenação moral.

O filme traz ainda outros momentos preciosos. Como a chegada de Pelé à sala onde concedeu as entrevistas: apoiando-se em um andador, ele empurra o aparelho para fora do foco da câmera tão logo se senta. “Não planejamos isso”, diz Tryhorn. “Sentimos que era importante mostrar que um dos maiores atletas tinha problemas para caminhar, mas ainda assim não aceita isso.”

Entre os diversos entrevistados, destaque para dois familiares: a irmã Maria Lúcia e o tio Jorge Arantes, que relembram a infância de Pelé, especialmente quando trabalhou de engraxate para ajudar em casa. E é justamente a singela imagem do rei do futebol batucando em uma caixa de engraxate que encerra o documentário.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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