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Cultura

Construção de uma drag queen e ativismo negro LGBT são retratados em publicações

Por Agência Estado

24 de maio de 2020, às 15h02 • Última atualização em 24 de maio de 2020, às 16h41

Você faz ideia de como nasce uma drag queen? A série Pose, na Netflix, traz um momento importante da história das expressões artísticas de LGBT nos Estados Unidos, principalmente para aqueles que sofreram com a exclusão e o preconceito para além da orientação sexual. “Hoje temos uma comunidade vibrante de bailes no Brasil nos quais essa tradição é reinterpretada, e pesquisas muito interessantes nesse sentido têm sido feitas”, afirma Rubens Mascarenhas Neto, doutorando em Antropologia Social e Cultural pela Universidade Livre de Berlim (FU-Berlin).

O cientista social lança no dia 26 de maio o livro Da praça aos palcos: caminhos da construção de uma carreira de drag queen, que fala sobre uma outra dimensão importante abordada pela série. “No meu livro, trabalho com as famílias de escolha, para usar a expressão da antropóloga norte-americana Kath Weston. Essas famílias são formadas a partir de laços de solidariedade, cuidado e carinho, ao redor de figuras maternas e paternas (muitas vezes ligadas à arte drag) que oferecem aos jovens LGBTs o amparo e o afeto que suas famílias biológicas ou de origem se recusam a oferecer”, ressalta.

Rubens explora as dinâmicas que envolvem os deslocamentos realizados por jovens de Campinas, no interior de São Paulo, que aspiram a uma carreira de drag queen. Ele investigou a constituição de performances, carreiras e trajetórias pessoais e profissionais.

No mesmo dia, Vinícius Zanoli, mestre em Antropologia e doutor em Ciências Sociais, lançará o livro Bradando contra todas as opressões! Ativismos LGBT, negros, populares e periféricos em relação. Ele realizou pesquisa com foco nas relações políticas do grupo ativista LGBT, negro e da periferia de Campinas, intitulado “Aos Brados – a vivência digna da sexualidade”.

“A partir da minha análise e do diálogo com a literatura, notei que o ativismo interseccional é algo que tem se consolidado no Brasil. Com isso eu quero dizer que, cada vez mais, as diferentes formas de ativismo (até mesmo aquelas mais tradicionais, como sindicatos) não estão buscando lutar contra uma opressão específica, mas contra várias. Isso ocorre porque parece ter havido um crescente processo de relação, de aprendizado e de trocas entre essas distintas formas de ativismo, desde às mais tradicionais, até aqueles ativismos jovens, com grande foco na internet”, analisa.

O E+ entrevistou os dois autores sobre suas publicações e quais caminhos percorreram durante as pesquisas. Confira.

Da praça aos palcos: caminhos da construção de uma carreira de drag queen, de Rubens Mascarenhas Neto

– Os caminhos para a construção de uma drag queen não são muito conhecidos do grande público. Quais caminhos são esses que descobriu durante a pesquisa?

Os caminhos da construção de uma carreira a que me refiro no livro dizem respeito aos variados deslocamentos que essas artistas fazem. Também faço alusão no título a um percurso na cidade de Campinas, no qual as drags se deslocavam de uma praça no centro da cidade, que é um importante espaço de sociabilidade e lazer de jovens LGBT, para uma boate na qual participam de concursos e fazem show. Esse caminho representa também os primeiros passos na busca pelo sonho de serem artistas.

Os deslocamentos são espaciais dada a importância de circular por diferentes espaços de show, desde os mais tradicionais como casas noturnas, bares e paradas LGBT, até os mais diversos como uma festa de casamento heterossexual (uma experiência narrada por uma interlocutora). E são também deslocamentos sociais, nos quais elas acessam grandes públicos, compartilham o camarim com outras artistas, reinterpretam símbolos de luxo e opulência ao mesmo tempo que driblam muitas vezes precariedade e exclusão.

– Onde essas drag queen vivem?

As artistas com quem trabalhei moram em Campinas, tendo residido por algum tempo também em cidades próximas, como Jundiaí. Campinas é interessante porque é uma cidade com um número grande de artistas drag de muito talento. Muitas vezes dividem casas e apartamentos com outras drags, amigos e/ou membros de sua família drag. Nesses lares, além de confraternizarem e dividirem o cotidiano, as drags também ensaiam, customizam suas roupas, transmitem suas técnicas de show e maquiagem.

– A série Pose, na Netflix, mostra um recorte da construção das drags nos EUA. Você explorou esse caminho aqui no Brasil também? E a que conclusão chegou?

Pose explora um momento importante da história das expressões artísticas de LGBT nos EUA, especialmente para aquelas e aqueles que sofreram e sofrem com a exclusão e o preconceito em diversas formas para além da orientação sexual (raça, classe, nacionalidade, identidade de gênero). Hoje temos uma comunidade vibrante de bailes no Brasil nos quais essa tradição é reinterpretada, e pesquisas muito interessantes nesse sentido têm sido feitas.

No meu livro eu trabalho com outra dimensão super importante que a série aborda: as famílias de escolha, para usar a expressão da antropóloga norte-americana Kath Weston. Essas famílias são formadas a partir de laços de solidariedade, cuidado e carinho, ao redor de figuras maternas e paternas (muitas vezes ligadas à arte drag) que oferecem aos jovens LGBT o amparo e o afeto que suas famílias “biológicas” ou “de origem” se recusam a oferecer.

As interlocutoras da pesquisa, mesmo sendo jovens (com vinte e poucos anos), assumem esse papel maternal de acolher, de maneira exemplar, jovens rejeitados. E, também, iniciam aquelas e aqueles que aspiram a uma carreira artística de drag.

– Com a experiência que você tem na área, acredita que iremos observar grandes transformações para as drag queens em um futuro a médio ou longo prazo?

Eu realmente não saberia precisar quando ou de que forma, mas tenho certeza que, baseado na imensa criatividade e capacidade de se reinventar das artistas drag queen, as transformações irão ocorrer. Aliás, acho que é justamente a beleza dessa expressão artística que é imprevisível.

Quem seria capaz de prever que Márcia Pantera, no início dos anos 1990, iria capitanear o bate-cabelo, que hoje é uma modalidade de show super importante? Ou de prever fenômenos como Glória Groove e Pabllo Vittar? Quem poderia antecipar que RuPauls Drag Race seria um sucesso de audiência nas plataformas de streaming para além do público LGBT? Não podemos perder de vista que todas essas conquistas em termos de visibilidade são fruto de uma longa história de luta e resistência de LGBT, na qual as drags também tiveram um papel importante. Afinal, foi uma mulher trans, negra e drag queen chamada Marsha P. Johnson (1945-1992) que iniciou a Revolta de Stonewall em NY, em 1969.

Bradando contra todas as opressões! Ativismos LGBT, negros, populares e periféricos em relação, de Vinícius Zanoli

– Poderia nos contar como foi o trabalho de pesquisa para o livro?

O livro é resultado da minha pesquisa de doutorado. Meu interesse foi compreender o surgimento de formas de ativismo que eu chamei de interseccionais. Eu explico melhor: eu tinha como inspiração a discussão sobre interseccionalidades, uma discussão teórica que tem como base o feminismo negro e que pensa nas interconexões de marcas de diferença (raça, classe, gênero, sexualidade, etc) na constituição de desigualdades estruturais e de subjetividades. Assim, eu busquei compreender formas de ativismos que discutem politicamente a “luta contra diversas ou todas as formas de opressão”, ou a interconexão entre opressões.

Eu realizei uma pesquisa etnográfica, com base em observação participante, entrevistas e análise documental. O foco foi nas relações políticas do “Aos Brados – a vivência digna da sexualidade”. Trata-se de um grupo ativista LGBT, negro e da periferia de Campinas, no interior do Estado, que atua em uma rede política que conecta coletivos culturais negros, comunidades religiosas de matriz africana, movimento cultural de periferia, movimento LGBT, sindicatos e partidos políticos. A proposta era analisar o que influenciou o Aos Brados a se compreender politicamente como um grupo que lutava pelos direitos de LGBT negros e periféricos. Por isso, eu parti da trajetória e da história do grupo, mas analisei uma rede de relações mais ampla, formada por outros coletivos da cidade: do movimento negro, do movimento de periferia e LGBT.

– Você chegou a entrevistar pessoas que fazem parte dos grupos mais oprimidos da comunidade LGBT?

A principal forma de produção de dados foi a observação participante. O que isso quer dizer? É um jeito bem comum de fazer pesquisa em antropologia social. Nela, nós acompanhamos nossos interlocutores em seu dia a dia. No meu caso, observei reuniões organizadas pelo grupo, encontros entre o coletivo e o poder público, atividades de formação política, manifestações, entre outras. Entrevistei também alguns ativistas do grupo e fiz uma pesquisa documental extensa: pesquisei no acervo documental do grupo, em matérias jornalísticas dos principais impressos de Campinas, páginas governamentais onde pude encontrar leis e projetos de lei, dentre outros.

– A que conclusão você chegou com esse trabalho?

A partir da minha análise e do diálogo com a literatura, notei que o ativismo interseccional, essa forma de atuar do grupo que eu estudei, é algo que tem se consolidado no Brasil. Com isso eu quero dizer que, cada vez mais, as diferentes formas de ativismo (até mesmo aquelas mais tradicionais, como sindicatos) não estão buscando lutar contra uma opressão específica, mas contra várias. Isso ocorre porque parece ter havido um crescente processo de relação, de aprendizado e de trocas entre essas distintas formas de ativismo, desde às mais tradicionais, até aqueles ativismos jovens, com grande foco na internet.

Eu proponho então que há um fortalecimento de um modo de pensar a política nos movimentos sociais que “lutam contra todas as opressões”. E concluo também que isso impacta no modo como esses movimentos atuam. Eles passam a emprestar cada vez mais estratégias uns dos outros. No caso do grupo que estudei, por exemplo, conforme eles foram se aproximando de coletivos culturais negros em Campinas, eles passaram do foco no que chamavam de atividades sociais para atividades culturais. Ou seja, influenciados pela valorização da estética e da cultura negra que existe nesses movimentos culturais, eles passaram a realizar atividades que valorizam o que entendem como uma cultura LGBT, negra e da periferia.

– Como a sociedade poderia avançar para aliviar a pressão para essa comunidade?

Uma coisa que chama atenção nessas discussões pautadas nas interseccionalidades é a importância de não pensar a vida dos sujeitos como fragmentadas. Quando o grupo diz que luta por direitos de LGBT negros e periféricos, eles estão apontando que diversas formas de desigualdade os atingem e que políticas públicas voltadas apenas ao combate à homofobia, ou ao racismo, ou ao desemprego e as más condições de moradia nas periferias, isoladamente, não dão conta de responder os problemas estruturais. Assim, é preciso pensar nessas políticas e em ações da sociedade civil de forma interseccional, todas aquelas políticas citadas acima devem ser realizadas em conjunto. O que eu quero dizer é que lutar contra o desemprego é tão importante quanto lutar contra a LGBTfobia que existe na nossa sociedade. De modo semelhante, enfrentar a LGBTfobia é essencial, mas se o enfrentamento for feito sozinho, sem uma luta conjunta contra o racismo, estamos deixando de fora uma parcela dos LGBTs que são negros e que não sofrem apenas com a LGBTfobia, mas também com o racismo.

Serviço:

Lançamento conjunto dos livros Bradando contra todas as opressões! Ativismos LGBT, negros, populares e periféricos em relação, de Vinícius Zanoli, e Da praça aos palcos: caminhos da construção de uma carreira de drag queen, de Rubens Mascarenhas Neto

Editora: Devires

Quando: Terça-feira, 26 de maio, às 19h (lançamento digital pela plataforma Zoom)

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