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Alessandra Olivato

Questão de simplicidade

Me parece que a tecnologia se encaixa perfeitamente nessa ideia, de tornar algo que poderia ser tão complexo ou que tomaria muito tempo em algo bem simples

Por Alessandra Olivato

08 de dezembro de 2021, às 08h31

Um das coisas que se imaginou no passado é que as invenções humanas possibilitariam à humanidade do futuro – nós – confortos e facilidades que permitiriam, entre outras alegrias, ter mais tempo livre. Certamente hoje desfrutamos de um conforto material nunca sonhado por nossos avós e bisavós, podemos nos realizarmos materialmente por vezes com pouquíssimo esforço físico, sentados em frente a algum tipo de tela e, no geral – eu disse no geral – menos preocupados com a sobrevivência. Mas será que conseguimos o tão desejado tempo livre e felicidade? De minha parte, sou adepta da ideia de quanto mais simplicidade, mais felicidade, quanto mais simplicidade, menos ansiedade e mais paz e por aí vai.

A simplicidade a que me refiro não significa, necessariamente, ausência de refinamento. Pelo contrário, pode ser o último status de algo refinado, de um processo tão inteligente que alcança a singeleza. E me parece que a tecnologia se encaixa perfeitamente nessa ideia, de tornar algo que poderia ser tão complexo ou que tomaria muito tempo em algo bem simples. Que maravilha! Será? Quem nunca quase enlouqueceu em um atendimento automático por telefone ou tentando fazer um cadastro na internet?

Você entra em um site para se registrar e concorrer a algo. Preenche alguns dados. Clica no botão “avançar”. Do nada, pede seu título de eleitor (esse é clássico). Quem é que sempre está com o título de eleitor às mãos, me diga? A gente já decora o número de tudo, tem que decorar esse também? Aí você sai à procura do danando. Como sempre demora um pouco, quando volta a página expirou. Você poderia entrar novamente para preencher o bendito do número, mas sente o cheiro do arroz queimado no fogão porque todo mundo já sabe que ficar no computador ou no celular e cozinhar não combinam.

No outro dia você precisa preencher mais um cadastro para solicitar uma certidão qualquer. Entra na página. Preenche os dados iniciais e vai abrindo um meio sorriso que por experiência geralmente vem acompanhado de um pensamento relâmpago… “será que é só isso?” Na página seguinte, porque nunca é numa só, é solicitada uma senha. Que você criou há cinco anos ou mais, em uma época em que ainda não havia aprendido a guardar ou escrever suas senhas todas em algum lugar, até porque nunca imaginou na vida que ia precisar de tantas senhas, e da qual não se lembra mais, obviamente. Tudo bem, é só clicar no “esqueci a senha”. O site te dá a opção de te reenviar por email ou pelo celular, entretanto o email que o site gravou também é antigo, cuja senha você não faz mais a mínima ideia. E o celular então? Era uns três números atrás, da época que você também não sabia que precisava da portabilidade para poder sobreviver nesse mundo. A essa altura você já soltou pelo menos um palavrão.

Num outro site em algum outro dia qualquer, você precisa gerar um protocolo e lá vai para a mesma peregrinação. Dessa vez, na segunda ou terceira página é solicitada uma certidão digital para você poder acessar o link no qual você ainda vai conferir se é de fato onde tem que gerar o bendito do protocolo. Mas que m… de certificação digital é essa? No meio disso, a internet resolve ficar lenta (ou a página expira de novo), seu filho te chama pedindo comida, seu marido pergunta onde está a toalha ou sua mulher pede você colocar a comida pros cachorros, ou você tem que voltar ao trabalho porque o horário do almoço acabou, enfim, pode acontecer e de fato acontece tanta coisa que só acreditamos porque já aconteceu conosco. Uma série de pequenas coisas que acontecem diariamente com o prazer único de testarem nossa paciência – sim, eu desconfio que tais “coisas” têm vida própria. Resumindo, a probabilidade de que você consiga voltar ao site e fazer o que precisa é ínfima. Fica pro dia seguinte. Só que no dia seguinte você ainda tem que levar alguém ao médico, você também precisa ligar para o banco para ver porque foi debitado um valor indevido do seu cartão de crédito, o dia no trabalho está mais cheio ou você simplesmente já se irritou o suficiente que deixa ainda pra outro dia. Quando você finalmente cria coragem para tentar gerar o bendito protocolo, lembra que esqueceu que ainda não tem a tal da certificação digital.

Quem também já passou pela experiência de ligar para algum lugar e um dos atendentes dizer: tem que vir pessoalmente e trazer isso e isso. No dia que você consegue um tempo pra ir, muito provavelmente está um calor de 35 graus e você tem a nítida impressão de que todo mundo escolheu ir no mesmo dia. Quando chega a sua vez da sua senha, o atendente fala: “ah, agora não é mais pessoalmente, é só baixar esse aplicativo e fazer isso e isso que já resolve.” “Mas, moça, eu vim pessoalmente, os documentos estão aqui, isso não é mais evidente? Não dá pra vocês abrirem o processo?” “Não dá não, senhora, me desculpe. Eu não tenho culpa que alguém informou errado.”

Alguns que estão lendo isso passaram ilesos pela era de reinado das impressoras. Não que ela tenha sido completamente esquecida, mas antes éramos mais dependentes delas. O dia inteiro trabalhando num documento, a semana ou o mês inteiro digitando um trabalho, pronto, acabei, agora só falta imprimir! Preciso contar o resto da história? Eu sou do grupo que já chorou por causa de uma impressora. Mas seu reinado acabou porque agora vivemos na dinastia do celular, que não parece ter prazo para acabar, visto que ele tem traços de ditador. Com um novo conselheiro qr code que agora nos obriga a provar que somos nós mesmos que estamos sentados no balcão à espera de uma simples cerveja, pelo amor de Deus.  

Entre tantas invencionices humanas, a danada da tecnologia é a mais safada, prometeu que resolveríamos tudo em questão de minutos e que teríamos uma vida mais fácil, mas fato é que ela criou um sem número de outras necessidades que se tornaram vários outros afazeres. O que demoraria minutos pode chegar a demorar semanas para resolver. Desconfio que existe uma fraternidade secreta do pessoal do TI e dos mestres do google que conspiram contra o resto da humanidade. Por que, eu não sei.  Mas cada vez mais entendo aquele povo que vejo na TV vivendo no Alasca cortando sua própria lenha e tentando pescar sua comida, sem lenço e sem documento.

Aviso aos leitores que essa coluna passará a ter a periodicidade a cada quinze dias devido ao acúmulo de tarefas. Nos “vemos” novamente daqui duas semanas.

Alessandra Olivato

Mestre em Sociologia, Alessandra Olivato aborda filosofias do cotidiano a partir de temas como política, gênero, espiritualidade, eventos da cidade e do País.