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Alessandra Olivato

Porte de arma

Questão divide a opinião pública e encontra-se entre aquelas que podem afetar o funcionamento real de uma sociedade a médio e longo prazo

Por Alessandra Olivato

23 de março de 2022, às 10h06 • Última atualização em 23 de março de 2022, às 10h07

Está no Senado a discussão do Projeto de Lei 3.723 de 2019, com propostas à flexibilização para registros e portes de armas no país, em especial para caçadores, colecionadores e atiradores esportivos. O projeto deve entrar em votação em breve. Favoráveis à flexibilização do porte alegam agir na ilegalidade, sem respaldo jurídico para suas atividades, enquanto opositores lembram do Estatuto do Desarmamento, além de possíveis desdobramentos.

Embora o projeto não discuta diretamente uma flexibilização do porte para os cidadãos em geral – sem desconsiderar que a ideia possa estar nas entrelinhas, a pauta remete a um velho debate no senso comum, o do direito de portar arma e se defender, questão que divide a opinião pública e encontram-se entre aquelas que podem afetar o funcionamento real de uma sociedade a médio e longo prazo, já que implica em mudanças inclusive sobre o papel do Estado e, sem dúvida alguma, sobre a segurança social. Para tentar expor os dois posicionamentos sobre o assunto – a favor ou contra – é interessante começar da concepção clássica do Estado moderno ou, dito de outro modo, sobre como se formaram as organizações política e social nas quais vivemos hoje.

Um dos fundamentos principais do Estado é o de ser o garantidor da paz geral para que a sociedade exista. Em termos práticos, foi assegurado a essa entidade política ser o único detentor do direito de portar armas e agir com violência – no combate à criminalidade, entre outros. O oposto radical dessa estrutura seria o direito universalizado do uso de armas pelos cidadãos, o que na teoria política se convencionou identificar como estado de guerra de todos contra todos. Não é muito difícil chegar à conclusão de que essa possibilidade seria muito provável em uma sociedade em que todos pudéssemos portar e usar armas conforme nosso julgamento pessoal.

Considerando essa razão primeira do Estado sabemos que há sociedades que funcionam muito melhor do que outras, isto é, algumas em que o Estado é bem mais eficaz em garantir a paz geral e a segurança da maioria enquanto que em outras o Estado muitas vezes deixa de cumprir esse papel. Expressões como “Estado paralelo”, por exemplo, se tornaram populares no Brasil dos anos 80 para se referir a um “funcionamento social” imposto e mantido por milícias do tráfico. Sabemos, inclusive, que esse tal estado paralelo não desapareceu, pelo contrário, se consolidou e coexiste conosco em diversos formatos como PCC, Família do Norte, Comando Vermelho etc.

Muito embora algumas ações nos últimos anos tenham contribuído para diminuir alguns tipos de crimes em regiões e cidades importantes como São Paulo, faz parte da história brasileira a ineficácia dos governos nas várias instâncias em nos proporcionar maior segurança. Como em relação a vários outros temas, a discussão sobre o direito ao porte de arma pelos cidadãos comuns recai na aporia entre o coletivo e o individual.

Parece mais do que legítimo o argumento de que qualquer pessoa deveria, como ser humano, ter o direito de defender a si e à sua família de criminosos que ultrapassam a barreira de segurança do Estado (as polícias) e chegam até nosso portão ou entraram em nossas casas. Compreendo totalmente o argumento do cidadão que se sente inseguro diante de tantos criminosos soltos por aí e principalmente daquele que perdeu entes queridos talvez por não ter uma arma para se defender. Desse ponto de vista, é uma ideia difícil de contrapor. Entretanto, não vivemos sozinhos e, para complicar, leis são feitas para milhares de pessoas. Isso posto e sob a perspectiva social, vejo a possibilidade de expandir o direito ao porte e uso de armas quase como uma tragédia anunciada. Por quê? Por vários motivos.

A não ser que fôssemos frios o suficiente para utilizarmos uma arma com presteza em uma situação de perigo – e não acho que assim seja, a não ser que todos fizéssemos um bom curso técnico, a não ser que os bandidos tivessem menos preparo para utilizá-las do que nós – o que acredito também ser o contrário e, não menos importante, a não ser que não tivéssemos outros agravantes sociais que motivam em muito o uso de uma arma – como violência doméstica e uma sociedade legitimamente alcoólica, talvez eu fosse favorável ao direto do porte e uso de armas.

Como um agravante a mais, a sociedade brasileira tem um temperamento caloroso, impulsivo e, o que já foi muito estudado, uma tendência à violência. Então, nesse caso e considerando-se os prós e contras, por ora ainda parece mais razoável que não possamos portar e usar armas livremente, preferindo a alternativa de que melhor seria universalizar e melhorar nosso nível educacional, até para desenvolvermos meios mais eficazes de cobrar do Estado que cumpra o seu papel. Sim, trata-se ainda da teoria versus a prática, do embate entre o que idealizamos e como lidamos com o que acontece na realidade, mas não acho que estejamos preparados para ter armas em casa e acredito que a possibilidade de perdermos ainda mais vidas bem como a de tirarmos vidas até por acidente seria ainda maior.

Alessandra Olivato

Mestre em Sociologia, Alessandra Olivato aborda filosofias do cotidiano a partir de temas como política, gênero, espiritualidade, eventos da cidade e do País.