28 de março de 2024 Atualizado 15:12

8 de Agosto de 2019 Atualizado 13:56
MENU

Publicidade

Compartilhe

Pelas Páginas da Literatura

Política do cancelamento, erros e o livro ‘Vestígios do Dia’

Livro do ganhador do Prêmio Nobel é um convite a refletir sobre o ato mais humano de todos: o erro

Por Marina Zanaki

10 de fevereiro de 2021, às 08h13

Todo mundo quer acertar. Isso vale tanto para as escolhas menores e insignificantes do dia a dia, mas principalmente para as grandes decisões que dão rumo à vida. Talvez um dos grandes medos universais seja o de falhar.

Assim como todo mundo quer acertar, todo mundo inevitavelmente erra. Mas na internet, erros não são tolerados e a cultura do cancelamento ganhou dimensões muito maiores do que foi concebido inicialmente.

Antes uma medida para tentar forçar consequências para abusadores que saíram impunes, a cultura do cancelamento tem alcançado uma proporção absurda e com consequências para a saúde mental de quem foi cancelado.

“Vestígios do Dia”, livro de Kazuo Ishiguro – Foto: Divulgação

Deixo como sugestão para refletir sobre esse assunto o livro Vestígios do Dia, do ganhador do Nobel de Literatura, Kazuo Ishiguro. A história é narrada pelo mordomo Stevens, que dedicou a vida ao patrão Lord Dalington, um nobre britânico.

O serviçal relembra sua trajetória profissional durante uma viagem de carro, e o leitor é apresentado a uma história de vida singular. A obra pode ser lida como um estudo de personagem, já que Stevens descobre muito sobre si observando novos lugares durante sua viagem.

O livro ganha uma camada social quando acompanha a função do mordomo não como uma simples ocupação, mas uma verdadeira classe, expondo a exploração da criadagem nas grandes casas tradicionais da Inglaterra.

Com esse livro, Ishiguro ainda toca em uma ferida histórica, lembrando que a aristocracia inglesa flertou com a Alemanha nazista antes de definir sua participação entre os aliados.

Apesar de todas essas qualidades, o que torna Vestígios do Dia uma obra prima da literatura não é exatamente isso. A espinha dorsal do livro é um sentimento universal, e que, portanto, tem a capacidade de transcender limites temporais e geográficos, conversando com qualquer pessoa. O grande tema do livro é o verbo mais humano de todos: errar.

Nas linhas finais, temos um breve vislumbre do coração do mordomo – e vemos que ele está quebrado. Ele errou ao servir com tanta devoção um patrão com inclinações nazistas, errou ao não se responsabilizar por sua própria postura política, errou ao ter medo do amor e nunca mais conseguiu encontrar alguém.

O momento em que ele toma consciência de todos os erros cometidos e sabe que não tem mais tempo de repará-los é aterrador. É o grande medo que assola todo mundo: e se eu estiver fazendo tudo errado?

Não acho que seja um livro sobre arrependimentos, mas sobre o momento que antecede esse sentimento, sobre a percepção do erro. A vida passou, o sol está se pondo, e Stevens tem somente os últimos vestígios do dia e da própria existência.

Marina Zanaki

Repórter do LIBERAL, a jornalista Marina Zanaki é aficionada pela literatura e discutirá, neste blog, temas relacionados ao universo literário.