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Alessandra Olivato

O filho mimado

Por Alessandra Olivato

01 de setembro de 2021, às 08h05

Costumo utilizar analogias para pensar, falar ou escrever porque acho uma das ferramentas mais úteis e eficazes da língua. Analogia é uma semelhança que se estabelece entre coisas distintas para que uma delas – seja um fato, uma ideia – ajude a esclarecer uma outra para alguém. Geralmente utiliza-se uma ideia bem conhecida da maioria para explicar algo cuja compreensão está mais difícil. Um uso bem conhecido de analogia pode ser encontrado nas chamadas parábolas de Jesus, que contem histórias daquela época com o intuito de passar um ensinamento.

Independente do meu ufanismo pelo Brasil e da minha defesa constante das qualidades que temos como país, território, nação e povo, é claro que temos nossos percalços, como qualquer sociedade. E justamente um dos que me salta aos olhos, e recorrendo a uma analogia, é o de que parecemos um filho mimado. Em dois aspectos.

O primeiro deles é na reclamação constante. Isso é bem perceptível num filho mimado, que geralmente tem tudo do bom e do melhor e nunca está satisfeito. É certo que isso tem mudado um pouco com a divulgação crescente de filosofias de gratidão e afins. Mas desde que eu era nova eu achava o brasileiro reclamão. Claro, não se negue, há coisas a lamentar como a corrupção desmesurada no serviço público, a nossa desigualdade social, a burocracia interminável e pesada, as altas taxas de homicídio em alguns lugares, a pobreza persistente em outros. Porém e também como sempre reafirmo, todos os países e culturas têm desvantagens. Escrevi em um de meus primeiros artigos como acho ultrapassado e equivocado a atitude de só elogiar outros países, ainda que haja muito a elogiar, e só enxergar os nossos “defeitos”. Essa auto-maledicência constante a que nos acostumamos, isso sim acho uma característica que deveríamos mudar, haja vista que não apenas somos um paraíso natural quanto, também, temos uma relevante parcela da população trabalhadora, batalhadora, persistente, criativa e ainda por cima alegre. Alguém já parou pra pensar, por exemplo, como apesar de sucessivos e atitudes inconsequentes de gerações e gerações de governantes não viramos “uma Venezuela”, como o senso comum gosta de dizer? Por que será? Porque a nossa abundância é sem igual, porque boa parte do nosso povo se levanta todos os dias para batalhar mantendo a esperança. Porque somos grandes em muitas coisas. Porque, no geral, não desistimos.

O outro senão que, para mim, faz a analogia com um filho mimado parecer perfeita é a de que o filho mimado desperdiça o que tem. Ele ganha um celular novo e quebra, ele despreza ideias como a de economizar água ou luz uma vez que esses recursos parecem infinitos pra ele, ele não cuida do carro, ele larga no prato a comida que não aprecia, ele joga fora coisas novas. Desperdiçamos recursos naturais com uma facilidade absurda porque a abundância é tão grande que não apenas não percebemos o quanto custou em termos de investimento financeiro mas, principalmente e talvez mais importante, o que significou em termos de esforço e trabalho humano para chegar até nós.

Fico a pensar se tem algo a ver com a natureza humana essa relação entre abundância e desperdício. Já é bem sabido que muitos países com escassez de recursos naturais ou dificuldades climáticas desenvolvem tecnologias e hábitos que faz parecer terem mais recursos do que o nosso abençoado país, embora não tenham nem de longe. Já em termos culturais, se eu tivesse que citar um sentimento que explicaria o porquê de desperdiçarmos aquilo que temos é a nossa tendência de só se dar valor a algo quando se perde.

Não achamos a água a coisa mais importante do mundo se falta água em nossa casa por mais de um dia? Ou quando a energia falha, o que nós, tão dependentes dela, fazemos? Quase nada. Desnecessário discorrer sobre a importância do alimento, qualquer que seja, se faltar à mesa. Interessante que, de igual maneira, geralmente só lembramos de valorizar o amor, a companhia, a amizade e a saúde quando estão em falta ou quando perdemos.  

Sabe-se lá porque nascemos em um lugar desse planeta onde não falta água salgada ou água doce, coberto por todo canto pelas sombras das árvores, perfumado em todos os lugares pelas flores, com frutas descartadas de feiras e mercados por sobrarem (!), com luz solar praticamente durante todo o ano; além disso, temos uma população que sorri e dança mesmo diante das adversidades e milhares – repito, milhares – de crianças e jovens criativos, cheios de energia e inteligência que poderiam se igualar a qualquer empresário bem sucedido, a qualquer atleta olímpico ou a qualquer cientista premiado mas que infelizmente nunca saberemos porque falta-lhes, por vezes, um par de óculos para estudar ou um tênis para correr.

Voltamos ao velho clichê de como o Brasil é o país do futuro, cheio de potencial, infelizmente não um clichê vazio. Há poucos – se há – lugares no mundo com tantos potenciais e que, vejam que incrível, apesar de não realizá-los, ainda é um lugar na maior parte do tempo maravilhoso de se viver. Mas também, sabe-se lá porque, já que questionei muito sobre isso, parece nos custar muito valorizar o que é nosso e aplaudir o nosso vizinho. Aplaudir o bom do estrangeiro se é bom é absolutamente natural, mas “pagar mais” pelo jardim do outro sem cuidar do próprio jardim me parece um pouco brega e me causa até certa vergonha alheia.   

Alessandra Olivato

Mestre em Sociologia, Alessandra Olivato aborda filosofias do cotidiano a partir de temas como política, gênero, espiritualidade, eventos da cidade e do País.