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Histórias de Americana

Contenda no engenho

Por mais que muitas famílias ainda residentes nesta região e de grande influência nos dias atuais neguem a existência da utilização da mão de obra escravizada, o documento mostra os abusos cometidos neste período, não só pelos proprietários de terras, mas por feitores e outros trabalhadores

Por Elizabete Carla Guedes

13 de junho de 2021, às 08h11

Dona Margarida da Graça Martins, considerada a fundadora da cidade de Santa Bárbara d’Oeste, possuía terras que foram adquiridas por compra da sesmaria pertencente a Diogo Toledo Lara, segundo documentos encontrados no Centro de Memória da Unicamp-CMU.

Ainda segundo esse documento, essas terras foram adquiridas antes do falecimento de seu esposo, o sargento mór Francisco de Paula Martins. Essas sesmarias se estendiam até as divisas do Ribeirão Quilombo, onde se confrontavam com outra sesmaria, pertencente ao capitão mór Joaquim Teixeira Nogueira.

Contudo, no ano de 1819, o sr. Ricardo Francisco Cordeiro, agregado de Margarida, manda um de seus escravos atear fogo na residência de um outro agregado da mesma, queimando móveis e a roça que este último havia cultivado. Não houve vítimas fatais neste episódio, pois o agregado a quem a casa pertencia não se encontrava no imóvel.

A contenda se agrava após Margarida mandar seu administrador erigir uma nova casa no mesmo local em que a outra havia sido queimada. Porém, Ricardo, agora acompanhado de seu genro, do feitor e de escravos armados, derruba o que já havia sido erigido, usando da força de armas. O administrador, segundo relatos de Dona Margarida, acabou por abandonar a obra para, deste modo, evitar mortes. Todavia, Ricardo, mandou que cercassem o terreno e, assim, passou a ofender o administrador com injúrias, tomando a propriedade para si.

Desse modo, Margarida resolveu abrir um inquérito judicial, expondo os fatos ocorridos para fazer com que Ricardo devolvesse as terras que pertenciam a ela. Sendo assim, no dia 3 de dezembro de 1819, na Vila de São Carlos (atual Campinas), foram ouvidos Ricardo Francisco Cordeiro e sua esposa Maria Custódia, recebidos pelo juiz de audiência José de Souza Siqueira e o tabelião Francisco Souza Machado. Da parte do juiz, foi requisitado que Ricardo devolvesse as terras das quais havia se apossado, e que a proprietária Dona Margarida deveria pagar as benfeitorias realizadas por ele. Em seu depoimento, entretanto, o acusado diz que as referidas terras, chamadas de Ribeirão dos Toledo, pertenciam-no, pois as comprara de João Vicente Soares havia mais de cinco anos.

Ainda em depoimento, Ricardo disse que que Dona Margarida estava equivocada, achando que as terras que ele cultivava faziam parte da sua sesmaria. Ainda segundo consta em autos do processo, ele afirmou que seus antecessores nunca haviam reconhecido as terras pertencentes a ele como sendo parte da sesmaria de Margarida. Contudo, complementou seu depoimento dizendo que a acusadora estava agindo de má fé, levando-o
à justiça, e que ele e seus antecessores estavam há muitos anos usufruindo daquelas terras. Portanto, afirma que iria recorrer da sentença.

Porém, em dado momento, os autos do processo comprovam que os documentos de posse das terras apresentado por Ricardo eram falsos. Entre estes documentos, havia em anexo um despacho feito por ele, declarando abrir mão do que não o pertencia. Tais evidências comprovaram, assim, que as terras em questão faziam parte do engenho denominado Santo Antônio da Graça, pertencente a Dona Margarida, como ela já havia mencionado, sendo esta sesmaria lavrada e demarcada juntamente às terras que confrontava, no dia 7 de fevereiro de 1799. Margarida também diz que seu finado esposo, ainda em vida, passara o direito de cultivo das terras a Ricardo, o qual teria, por ocasião do falecimento de seu marido, tomado posse da mesma. Ela ainda compara Ricardo e seus familiares a formigueiros, dizendo que pareciam mais ladrões do que pessoas.

Em 9 de maio de 1820, Margarida diz por carta ao juiz que fossem avaliadas as benfeitorias efetuadas nas terras por Ricardo. Neste ponto, temos acesso a um panorama detalhado da região envolvendo a contenda, bem como do que era cultivado neste período. Desta forma, havia dois lanços de casas feitas de pau a pique coberta de telhas, casas carreadas, sendo uma parte só de pau a pique, contendo duas portas com fechadura e madeira lavrada.

Havia nas terras uma plantação de um pouco menos de um quartel de cana, um pequeno mandiocal e um bananal. Também cultivavam uma horta e nove pés de laranjeira. Havia também uma ponte sobre o Ribeirão Toledo construída por Ricardo, bem como um monjolo velho existente. Como o juiz mantém a mesma sentença que já havia sido proferida antes de Ricardo recorrer, a ordem foi de que o acusado e sua família deixassem as terras e a propriedade em 24 horas, sendo Margarida obrigada a pagar as benfeitorias realizadas por Ricardo.

Além da contenda, trata-se de um documento importante para avaliação da vida cotidiana de tempos de posse de terras, que muitas vezes eram tomadas à força e com uso bruto do poder das armas. Contudo, também com grande importância, temos o relato dos propósitos outros, isto é, da utilização da mão de obra escravizada, responsável não só pelo trabalho nas lavouras, mas doméstico.

Por mais que muitas famílias ainda residentes nesta região e de grande influência nos dias atuais neguem a existência da utilização da mão de obra escravizada, o documento mostra os abusos cometidos neste período, não só pelos proprietários de terras, mas por feitores e outros trabalhadores que igualmente mantinham a chibata nas mãos, utilizando-se do poder para enriquecer e oprimir aqueles que não tinham voz nem direitos.

A pesquisa nestes documentos se faz importante para entendermos o passado fazendo referência ao presente, analisando os processos do desenvolvimento humano, bem como das características geográficas da região e da economia implantada e desenvolvida. Trata-se de aguçar o olhar crítico e entender como se deram os processos de formação etnológica, cultural e socioeconômica, intrínseco à memória e ao fortalecimento do sentimento de pertencimento a uma determinada sociedade.

Contudo, vemos ainda nos dias atuais a negativa de que todos nós temos uma parcela de responsabilidade pelo sistema de escravidão implantado, fruto desta herança, marcada por sangue, violência e maus-tratos. Negá-la não é o caminho para uma sociedade mais justa e igualitária: é preciso debater e reconhecer que, ainda hoje, o poder hegemônico ainda está latente no silenciamento e na negação dos grilhões impostos que tanto construíram o enriquecimento das elites.

Também é preciso lembrar que a narrativa construída aqui, apesar de ser uma história ocorrida na cidade de Santa Bárbara d’Oeste, neste período denominada Freguesia Nova de Santa Bárbara, esbarra na formação do município de Americana, que compunha parte dessas terras e também do sistema escravocrata da região de Campinas, bem como do Brasil como um todo.

Elizabete Carla Guedes
Membro do grupo Historiadores Independentes de Carioba, dedicado à pesquisa histórica sobre Americana.

Historiadores de Carioba

Blog abastecido pelo grupo Historiadores Independentes de Carioba, que se dedica à pesquisa histórica sobre Americana.