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Cotidiano & Existência

Confissões

Por Gisela Breno

11 de agosto de 2020, às 07h42

Apesar do meu jeito alegre e descontraído de ser, tenho desde criança a companhia da melancolia. Minha mãe, preocupada com a genética dos Bianco e dos Dedona e por conta dos imensos desafios que a transformaram numa feroz e doce leoa com cinco filhas e viúva, tentava, sem sucesso algum, minar minha apuradíssima sensibilidade dizendo que “os canalhas também envelhecem” quando me via derramando lágrimas diante de velhinhos pobres, me impedia de ir a velórios temendo que eu não suportaria presenciar a dor dos familiares, fossem eles meus conhecidos ou não, e poupava-me de ouvir conversas trágicas

Por volta dos meus 11 anos levou-me para uma consulta em Campinas com o conhecido Dr. Penna Chaves, pois assustada ficava com minhas perguntas existenciais. Rindo ele lhe deu, para seu alívio ,o diagnóstico: essa criança não tem problema mental, apenas o intelecto mais desenvolvido para sua idade. Anos mais tarde soube que esse médico era psiquiatra e entendi o porquê desse segredo; levar alguém, ainda mais uma criança, naquela época a esse especialista era literalmente coisa de louco.

Minha melancolia, em determinados momentos e contextos, cede lugar a sua irmã gêmea, a tristeza.

O Natal é um deles; as reuniões de amigos e familiares, as fartas refeições, as luzes coloridas das casas, dos edifícios, os presentes expostos nas lojas, a alegria ruidosa das crianças, a correria desenfreada dos adultos sempre me provocam nós na garganta, pois não saem da minha mente os milhões de desempregados do nosso espoliado Brasil, a fome e o desamparo rotineiros de bilhões de pessoas , as desigualdades e sofrimentos de toda natureza que assolam o Mundo.

Mas nesses últimos meses, de uma maneira sem igual, a tristeza e o inconformismo invadiram minha mente, minha alma.

A menininha de outrora, agora no outono da vida, continua com a sensibilidade à flor da pele, questionando a essência e a existência humanas e pergunta incessantemente:

Em que lugar desse planeta enterrou-se a nossa humanidade?

Não é possível que o presidente de uma nação vista-se com a camisa do time vencedor de um campeonato para parabenizá-lo pela conquista e não profira uma palavra de conforto e solidariedade nesse dia em que se atinge o terrível e inadmissível número de cem mil -100.000 mortos por Covid-19.

Se a morte de uma pessoa dilacera uma família, imagino o rio caudaloso de lágrimas dessa multidão que perdeu alguém que tinha nome, sobrenome, história, desejos, sonhos, amores, que não foram atenuadas pela compaixão imprimida no caráter do verdadeiro estadista.

Que vírus , vermes, ou bactérias nocivas têm feito morada nos cérebros dos que não hesitam em humilhar pessoas que, diante de seus olhos contaminados, lhe parecem inferiores?

Por que sepultamos o diálogo conciliador dando passagem e prepotência ao ódio da intolerância sabendo que as ideologias são passageiras?
De onde vem o egoísmo que torna nossos corações insensíveis aos dramas alheios?

Nesses tempos difíceis e desafiadores para toda a humanidade, desejo que minha amada mãe, acamada e sem consciência há anos, de fato não perceba que a primeira de suas cinco filhas além da melancolia e da tristeza deu acolhida ao desencanto.

Gisela Breno

Professora, Gisela Breno é graduada em Biologia na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e fez mestrado em Educação no Unisal (Centro Universitário Salesiano de São Paulo). A professora lecionou por pelo menos 30 anos.