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Papo Fermentado

Cerveja é coisa de mulher

Papo Fermentado quer descontruir o estereótipo de que “mulher que bebe cerveja é vulgar”; confira o texto!

Por Papo Fermentado

04 de março de 2021, às 09h21 • Última atualização em 04 de março de 2021, às 09h26

“Dê-me uma mulher que goste de cerveja e eu conquistarei o mundo”.

Essa frase é de Guilherme II, último imperador alemão e rei da Prússia. Lá em meados de 1900 poderia fazer sentido e até afirmar o ego masculino, mas hoje em dia… Ah… Hoje em dia poderíamos repaginar essa frase e transformá-la em:

“Dê-me uma boa cerveja e eu conquistarei o mundo” afinal de contas nós, mulheres, já estamos na caminhada de conquistar e (re)ocupar nossos espaços há anos.

Tudo começou de forma tímida, com uma ou outra, com um discurso amedrontado, em grupos pequenos. Apesar dessa suposta pequenez,  esse começo me parece forte o bastante para reverberar ainda hoje. São quantos anos de luta por igualdade? Quantas provas de nós mesmas já foram dadas? Quantos tentaram nos silenciar até aqui? Quantos ainda tentarão?

Fernanda Brito, cervejeira: “dê-me uma boa cerveja e eu conquistarei o mundo”! – Foto: Divulgação

Esse texto cabe não apenas para meninas que gostam, estudam e trabalham com cerveja, mas para todas as mulheres que recebem um olhar diferente ou uma pergunta ácida por ocupar lugares tidos como masculinos, também para aquelas que precisam afirmar, constantemente, sua competência, postura, inteligência e poder de decisão.

Vamos começar molhando as palavras? Pode ir buscar seu drink preferido, uma taça de vinho, um suco, uma água, um refri, um café… uma cerveja talvez? Eu sempre digo que ler é bom, mas com uma bebida para acompanhar é melhor ainda.

Nosso papo começa há 10 mil anos a.C, data que temos como o surgimento da cerveja. Nós estávamos lá quando nos tornamos nômades e passamos a cuidar da terra para o plantio. Assumimos as tarefas domésticas enquanto os homens plantavam e caçavam. Nós preparamos o alimento, fizemos o pão e, acidentalmente, descobrimos a cerveja através de um cesto de grãos que ficou exposto à chuva.

Nossos poderes eram divinos, inexplicáveis.  Babilônios e sumérios nos chamavam de sabtiem. A produção cervejeira era nossa e também cuidávamos das tabernas. As deusas estavam ali para abençoar o processo cervejeiro caseiro: “Ninkasi, você é a única que derrama a cerveja filtrada do barril coletor, É [como] o encontro do Tigre e Eufrates”. Veja bem, eram as deusas e não os deuses.

Avançando para a Idade Média, entre os séculos V e XVI na Alemanha, é uma freira beneditina que menciona a utilização de lúpulo nas receitas pela primeira vez. Hildegaard Von Bingen. Grande avanço nas pesquisas que envolviam proteção bacteriostática das cervejas. Ora et Labora, orar e trabalhar. Seus estudos envolveram plantas e medicina humana. Veja bem, uma freira e não um padre ou um monge.

Nessa mesma época na Inglaterra, nós fabricamos cerveja em casa e vendemos para complementar o orçamento do lar. Nos chamavam de Alewives. As leveduras ainda não eram conhecidas, então nós ainda tínhamos esse poder misterioso e inexplicável de fabricar uma bebida inebriante. Fomos vistas como bruxas. O que fizeram conosco? Nos levaram para a fogueira.

E a Inglaterra foi um dos mais importantes lugares para a popularização total da bebida, inclusive a rainha Elizabeth I a apreciava muito. Apesar disso, com os avanços tecnológicos da Era Moderna e Contemporânea, a fabricação da bebida começou a ser industrializada e retirada das mãos femininas. Acredito que aqui nossa história com a cerveja tenha mudado.

A partir deste ponto a cerveja torna-se cada vez mais masculina, cada vez mais distante de nós, o bar é um ambiente para homens, os assuntos que permeiam a cerveja também. “Cerveja é papo de homem”, “Só homem sabe beber cerveja”, “Drink que é bebida de mulher”.

Para falar a verdade, essas frases pronunciadas por um homem pouco me afetam, o que me incomoda mesmo é quando ouço uma mulher dizendo coisas como essas. “Cerveja não é elegante”, “Cerveja não é chique”, “Mulher que bebe cerveja é vulgar”. Agora levo para além da cerveja: estão, algumas de nós, se esquecendo de nossas ancestrais? Se esquecendo das lutas que vieram antes das nossas? Nosso direito de fala, de voto, de trabalho, de escolha… Isso não surgiu do nada. Mulheres vieram antes de nós e possibilitaram sermos o que somos hoje.

Cabe a nós honrá-las. Seja cuidando do lar, em uma empresa familiar ou multinacional, empreendendo, sem carteira assinada ou com FGTS sendo depositado. Trazendo de volta para a cerveja: em cervejarias, em bares ou restaurantes, produzindo, vendendo ou atendendo. Não importa.

Se você acha que eu sou apenas uma garota escrevendo algumas linhas sobre cerveja porque é legal, porque é diferente, porque tá na moda… Você errou. Eu sempre estive aqui. Seja no meu próprio corpo, seja no corpo de outras. A minha fala sempre desejou ser ouvida. Seja pelo meu próprio timbre, seja pelo de outras. O meu lugar sempre esteve aqui, eu apenas estou voltando para onde nunca deveria ter saído, ou terem me tirado.

Eu sou mulheres descobrindo cerveja antes de Cristo, mulheres cultuando deusas, mulheres usando cerveja para fins medicinais, sou bruxas da idade média, sou aquelas que retomaram a produção no período de guerras mundiais enquanto os homens estavam em campo, sou mulheres criando receitas, degustando cervejas, estudando estilos, criando marcas, pensando em pessoas, ensinando pela internet, escrevendo textos. Eu sou Fernanda. Uma mulher feita por muitas outras.

Papo Fermentado

Blog do casal Fernanda Brito e Bruno Martinelli, sommeliers de cerveja pelo Instituto da Cerveja Brasil. Amamos contar nossas experiências gastronômicas, a história que envolve a linha do tempo da cerveja e dicas para quem quer se aventurar nesse universo. Fale com a gente pelo ola@papofermentado.com.br ou WhatsApp (16) 99339-1221. Nas redes sociais, somos o @papofermentado.