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Alessandra Olivato

Aquele tapa

Difícil buscar um equilíbrio entre os conceitos de liberdade, liberdade de expressão, direito, censura, bulliyng etc

Por Alessandra Olivato

06 de abril de 2022, às 09h43 • Última atualização em 06 de abril de 2022, às 10h23

Existem algumas atitudes difíceis de serem compreendidas igualmente pela maioria de nós e, além disso, algumas parecem exprimir um padrão de comportamento ou visão de mundo que se repetem mais em alguns grupos do que em outros. A visão de mundo a que me refiro é a da sensação que algumas pessoas têm de terem mais direitos bem como mais privilégios do que outras. No meu exclusivo e parcial ponto-de-vista observo essa característica mais frequentemente em políticos em especial, intelectuais, machistas em geral e algumas áreas profissionais, entre elas a jurídica e a artística. Acredito que essa sensação deva-se a questões culturais bem como a uma situação de relativo poder de que gozam, e apresso-me em dizer que se trata de uma generalização simples para servir à elucubração de hoje.

Cito a classe artística para me referir à sensação que alguns parecem ter de direito a uma liberdade maior do que outros, que convencionamos chamar de liberdade de expressão e à qual se dá a conotação de uma liberdade à qual não deveria existir nenhuma restrição ou censura. Usemos como exemplo os episódios recentes envolvendo o comediante Fábio Porchat e aos atores Will Smith e Chris Rock.

Entre Will Smith e Chris Rock, discutiu-se quem errou ou quem errou mais: o primeiro que deu o tapa ou o segundo que fez uma piada com menção pejorativa à mulher de Will. A outra questão é: qual é o limite para a comédia e para a manifestação artística, a um ofício que tem por natureza entreter e cuja natureza é a criatividade?

Quando saímos da esfera do chamado “mimimi” e entramos na dimensão da falta de respeito ou da ofensa? Como analisar esse ocorrido que aponta diretamente para esse precioso conceito de liberdade de expressão, tão caro às sociedades modernas? Deve a liberdade de expressão ser irrestrita? Se sim, o que significa ser irrestrita e o que significaria restringi-la? E como? A liberdade de expressão irrestrita é desejável na vida em sociedade em que tudo o que fazemos tem consequências e, se não tem consequências para nós no momento, pode vir a ter no futuro? Poderia ser essa liberdade de expressão irrestrita, ou seja, sem qualquer censura, mais uma visão de mundo de um grupo poderoso – representante de uma das maiores indústrias do mundo, imposta a todos os demais? Vejam, o ponto aqui não é se a manifestação artística ou a liberdade de expressão sem qualquer tipo de restrição é algo certo ou errado mas se, sendo um ponto-de-vista, serve para todo mundo ou não.

Uma das cenas do filme de Fábio Porchat toca no tema da pedofilia com um tom ambíguo, podendo ser visto, como ele defende, como uma crítica à hipocrisia social, mas também como uma sátira de mau gosto e totalmente inadequada. Emblemático um de seus comentários sobre a polêmica: “O maior orgulho que tenho na minha carreira é que consegui desagradar com a mesma intensidade tanto petista quanto bolsonarista. Os chiliques, o falso moralismo e o patrulhamento vieram fortes contra mim dos dois lados. Nenhum comediante desagradou tanto quanto eu. Sigo rindo.” A despeito dos vários ângulos que se possa analisar o comentário, destaco o indisfarçável culto à personalidade e à própria importância. Desculpe, Porchat, nada pessoal.

Difícil buscar um equilíbrio entre os conceitos de liberdade, liberdade de expressão, direito, censura, bulliyng etc. Como já sugeri em ocasiões passadas penso que muitas vezes nos ofendemos desnecessariamente e penso se não haveria, em alguns casos, um sentimento excessivo de ofensa e um excesso de reações exageradas ao que outros dizem ou não. Por outro lado, não consigo imaginar uma sociedade com liberdade irrestrita para todos – senão o direito de um não terminaria ao começar o direito do outro – ou uma vida sem qualquer relação custo-benefício. Está certo que, estritamente, todo mundo pode ser cem por cento livre. A questão é se devemos. Parece uma característica muito interessante a de alguns que esperam aplausos e reconhecimento por seus acertos ou aptidões mas não sabem lidar com qualquer tipo de sanção ou contrariedade, pior ainda com indiferença.

Se fosse o caso de definirmos o que poderia ser dito ou não por qualquer um, o primeiro critério que me veio à cabeça seria o da velha máxima “não fazer com os outros o que não gostaríamos que fizessem conosco.” Ainda assim isso poderia abrir uma brecha se eu for o tipo de pessoa que não me importo com nada do que dizem e nada do que falam, se nunca me ofendo. Não funcionaria. Então, qual poderia ser o critério? Difícil dizer. Podemos pensar em outra solução então: a de cultivar a consciência de que qualquer ação implica em uma reação – boa ou ruim. A consciência de que viver em sociedade significa que para algumas coisas eu serei totalmente livre, mas para outras isso não será possível. Humildade em reconhecer que a reação – sobretudo quando contrária – goza do mesmo direito de ser expressa como a ação que a causou. Talvez esse tipo de humildade já nos ajudasse a sermos mais respeitosos e menos hipócritas.

Alessandra Olivato

Mestre em Sociologia, Alessandra Olivato aborda filosofias do cotidiano a partir de temas como política, gênero, espiritualidade, eventos da cidade e do País.