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Alessandra Olivato

O verdadeiro pastor

Novo artigo da socióloga Alessandra Olivato relembra uma entrevista do teólogo e pastor evangélico Ed René Kivitz para discutir a fé brasileira

Por Alessandra Olivato

07 de julho de 2021, às 08h32 • Última atualização em 07 de julho de 2021, às 08h47

Hoje eu tento tecer alguns comentários a uma excelente entrevista de Marcelo Tas ao teólogo e pastor evangélico Ed René Kivitz em seu programa Provoca na TV Cultura. A entrevista foi ao ar em 24 de março de 2020.  Em primeiro lugar, admiro o trabalho do ex-apresentador do extinto CQC, dada a educação com que trata seus interlocutores, transparecendo muito pouco a arrogância tão comum a muitos dos que detém um pouco mais de cultura que a média dos brasileiros. Fecha parênteses.

Marcelo já inicia com uma provocação a Kivitz perguntando por que tem tanto pastor trambiqueiro no Brasil, ao que pastor evangélico responde “Porque (tem) tanta gente trambiqueira no Brasil!”, acrescentando que “ser trambiqueiro não é privilégio de lideranças espirituais ou religiosas.” Marcelo emenda: Porque tantas igrejas? E Kivitz: “Porque a busca de Deus também faz parte do ser humano. A busca de conexão com o divino. (…) Os críticos da modernidade, vamos dizer assim, (disseram) que a religião ia desaparecer, não, a religião ganha novas formas, ela não desaparece. (…) Agora, se as pessoas vão se aproveitar disso, elas fazem um aproveitamento negativo tanto na política, no entretenimento, no business e na religião também.” Em meu humilde ponto-de-vista o pastor já avança algumas casinhas no tabuleiro à frente de Marcelo, acertando muito ao deixar subentendido que deve-se tomar cuidado com essa generalização.

Embora considere toda a entrevista sensacional, gostaria de destacar um ponto da conversa. Tas pergunta a René por que crente não pode nada, não pode beber, não pode fumar, nem criticar a igreja? Segue-se a resposta inesperada de Kivitz: “Poder pode, é que o crente não quer né? A experiência da conversão gera uma outra predisposição ética. Gera um outro apetite para com a vida. Então essa ideia de que ser pra Deus, ser de Deus é trocar o prazer pelas coisas mundanas, pela vida empobrecida de prazer é uma ideia falsa, porque na verdade são dois prazeres diferentes. Um prazer desmedido que os gregos já falavam lá atrás como nocivo e um outro tipo de prazer. É muito mais uma caricatura do que uma realidade.”

É claro que o pastor está se referindo aos crentes genuínos, isto é, não aos que frequentam o culto por mera sociabilidade ou tradição. E novamente ele confronta de maneira tão segura não apenas Tas mas toda uma parcela de pessoas que se apoiam na ideia restrita de que todos os que tentam seguir um preceito religioso o fazem simplesmente porque foram convencidos por alguém dotado de uma retórica avantajada o que, complementando, é preconceituoso porque pressupõe a incapacidade desses de pensarem por si próprios, além de negar a possibilidade de a prática religiosa ser uma escolha consciente. Que escolha? A escolha não apenas de acreditar em Deus mas também a de se permitir ouvir outra pessoa sobre isso e de participar de rituais que não necessariamente têm explicações lógicas, mesmo quando não se concorda com tudo o que ouve e vê. Assim, o significativo do bate-e-volta entre Tas e Kivitz é que enquanto a pergunta sugere que a disposição em acatar as “proibições religiosas” seja uma característica de servir sem questionar – o que justamente expressa o preconceito contra a fé de forma geral, a resposta aponta para uma humildade, que é a de tentar aprender sobre algo que parece tão intangível, Deus.

Há, ainda, outra explicação possível: a de que boa parte das pessoas que segue alguma religião ou preceito espiritualista tem como principal motivação tentar ser uma pessoa melhor. Pode ser absurdo colocar dessa maneira, mas fato é que essa ideia tão simples e primitiva sobre a religiosidade tem sido bastante desconstruída nas últimas décadas no Brasil, a partir de uma identificação errada entre a fé em si e a expansão suspeita de templos e igrejas.

Outro momento digno de nota na entrevista, quando questionado sobre seu posicionamento politico, Kivitz faz provavelmente um dos melhores esclarecimentos que se possa ter sobre o tema da polaridade política no Brasil: “Houve um equívoco histórico pós-ditadura militar no Brasil. O equívoco em associar aqueles que buscam justiça social com identidade de esquerda. O equívoco é acreditar que um espectro ideológico detém o monopólio da virtude. (…) Criou-se na nossa cultura brasileira a ideia de que ser de esquerda é ter virtude moral, ser de direita é ser pró-ditadura, pró-tortura, pró-fascismo etc. A gente precisa sair dessa binariedade.”

Gostaria de escrever um artigo para cada comentário do pastor, mas não é possível. Ao contrário do que supõe o programa, Tas não é nem de longe o protagonista da provocação. Digo mais: fosse dada a devida importância a essa entrevista ela poderia ser um ponto de inflexão histórico em que o homem da religião dá um xeque-mate no homem da razão pura, e ajuda a mostrar que a prática religiosa pode ser uma escolha tão consciente quanto inclusive carregada de racionalidade, não apenas uma reação automática de alguém predisposto a ser influenciado e manipulado. Até porque manipulação também não se restringe ao meio religioso. Vale a pena ver a entrevista na íntegra. Até a próxima!

Alessandra Olivato

Mestre em Sociologia, Alessandra Olivato aborda filosofias do cotidiano a partir de temas como política, gênero, espiritualidade, eventos da cidade e do País.