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A espanhola, por Nelson Rodrigues

Por Carlos Roberto Bertollo

20 de setembro de 2020, às 09h12

Memorável escritor, jornalista e dramaturgo brasileiro, aos seis anos de idade vivenciou com seus olhos de criança a gripe espanhola. Em suas memórias publicadas em meados da década de 1960, recorda a peste que atacou impiedosamente a cidade do Rio de Janeiro:

“Morrer na cama era um privilégio abusivo e aristocrático. O sujeito morria nos lugares mais impróprios, insuspeitados: – na varanda, na janela, na calçada, na esquina, no botequim. Normalmente, o agonizante põe-se a imaginar a reação dos parentes, amigos e desafetos. Na Espanhola não havia reação nenhuma. Muitos caíam, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam, lá, estendidos, não como mortos, mas como bêbados. Ninguém os chorava, ninguém… Ora, a gripe foi, justamente, a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos. Era em 1918. A morte estava no ar e repito: – difusa, volatizada, atmosférica; todos a respiravam…. De repente, passou a gripe. Ninguém pensava nos mortos atirados nas valas, uns por cima dos outros. Lá estavam, humilhados e ofendidos, numa promiscuidade abjeta. A peste deixara nos sobreviventes, não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte. Lembra de um vizinho perguntando: – ‘Quem não morreu na Espanhola?’”.

A gripe espanhola chegou através do navio Demerara que tinha saído da Europa, atracando em Salvador, Recife e no Rio. Em nosso país, a gripe fez 35 mil vítimas. A grande perda foi a morte do presidente do Brasil Rodrigues Alves, falecido em 1919.

Carlos Roberto Bertollo
Estudioso da lenda de Ícaro e criador de réplicas de aeronaves

Colaboração

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