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Liberal Explica

Quando o aborto é legal?

Direito à interrupção de gravidez é previsto pela legislação brasileira em três situações

Por Isabella Hollouka

03 de julho de 2022, às 08h15

Embora seja previsto pelo Código Penal brasileiro há mais de 80 anos, o direito à interrupção de gravidez é tema frequente de debates acalorados. Assegurado em casos de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia fetal, o direito tem como principais barreiras a falta de políticas públicas e o conservadorismo diante do assunto. O LIBERAL buscou especialistas para compreender o que diz a lei.

“Não se encaixando em nenhuma das três hipóteses, o aborto pode ser considerado criminoso, um crime doloso contra a vida, e tanto médicos como gestantes respondem perante o tribunal do júri”, aponta Matheus Falivene, doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo).

Quando provocado pela própria gestante, a pena varia de 1 a 3 anos; quando provocado por terceiros, com o consentimento da gestante, de 1 a 4 anos; e sem o consentimento da gestante, de 3 a 10 anos.

Protesto em defesa do direito ao aborto de uma menina de 11 anos, em SC – Foto: Leo Bahia / Fotoarena / Estadão Conteúdo

Falivene explica que a mulher que procura atendimento médico após um autoaborto pode ser investigada. Além disso, desde 2020, uma lei obriga profissionais de saúde a registrarem no prontuário médico da paciente e comunicarem à polícia, em 24 horas, indícios de violência contra a mulher.

Para os casos em que a gravidez representa um risco à vida da mulher ou há anencefalia fetal, são necessários laudos médicos para que os procedimentos sejam liberados. A lei não obriga que a vítima de estupro apresente boletim de ocorrência ou qualquer exame que ateste o abuso, como um laudo do IML (Instituto Médico Legal). Entretanto, Falivene explica que a exigência do registro policial, ou até mesmo autorização judicial, é comum.

Além do procedimento em si — com indução através de medicamentos, procedimentos aspirativos ou dilatação seguida de curetagem — a mulher tem direito a receber acompanhamento psicológico e social. “O sigilo é preservado e, se houver vazamento, cabe investigação. Pode configurar crime de violação e indenização por dano material e moral”, acrescenta Falivene.

A equipe médica tem o direito de não realizar o procedimento, quando for contrário à sua consciência, porém tem a obrigação de encaminhar o caso a outra equipe que o faça. Se isso não ocorrer, a mulher pode buscar o Ministério Público ou a Defensoria Pública.

Elisângela Pauli, advogada com formação em “Feminismo Para Uma Outra Sociedade”, membro do Conselho Municipal da Mulher de Piracicaba e do Grupo Mulheres do Brasil, ressalta que menores de 14 anos grávidas têm direito ao aborto e amparo.

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“A lei brasileira é clara: há presunção de violência para qualquer criança abaixo de 14 anos, pois se entende que ela não consente com ato sexual. O estupro é presumido, há violação da integridade da criança, pois nesta idade, na grande maioria dos casos, não tem discernimento, ela é facilmente convencida, constrangida, violentada”, diz.

BARREIRAS. Para Pauli, a principal barreira para o acesso ao aborto legal é a falta de políticas públicas para as mulheres. “Não temos campanhas educativas, profissionais especializados. Muitas vezes o profissional que faz o atendimento no hospital público não sabe fazer uma escuta qualificada e o acolhimento necessário. Muitas vezes é um homem e a mulher não se sente confortável. Elas se sentem julgadas assim que chegam ao hospital, se arrependem de registrar boletim de ocorrência por conta da forma como são tratadas”, exemplifica.

A advogada lembra que o conservadorismo é outra barreira. “Tivemos dois cenários recentes e de repercussão, a interrupção da gravidez de uma menina de 11 anos e a entrega para adoção feita pela atriz (Klara Castanho), e em ambos os casos elas foram julgadas e tratadas como criminosas, mesmo estando amparadas pela lei”.

Manifestantes antiaborto, no DF, pedindo a aprovação do Estatuto do Nascituro – Foto: Cintia de Oliveira / Futura Press / Estadão Conteúdo

Consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, Sandra Franco diz que há uma clara tentativa de se complicar o cumprimento do texto legal. “O Ministério da Saúde tem estudado uma cartilha que, na prática, traria mais dificuldades às mulheres que alegassem terem sido estupradas. Outra diretriz está em se aguardar a comprovação de que, de fato, a mulher foi vítima de um estupro. Na prática, a depender da velocidade da apuração, essa comprovação poderia nunca ocorrer ou se dar após o nascimento da criança”, afirma.

“A controvérsia quanto ao aborto reside no fato de que o direito à vida, assim como o direito à vida privada e à dignidade, não são absolutos. Para alguns, o Direito Constitucional e natural à vida do feto precisa ser respeitado. Para outra corrente, a mulher faz jus ao direito à dignidade humana, ao direito de escolha. Parte da sociedade brasileira recrimina o procedimento, mesmo em caso de estupro. Descriminalizar o aborto não é incentivá-lo”, comenta Franco.

INFLUÊNCIA. Para Falivene, a decisão da Suprema Corte dos EUA, que levou para os estados a definição de regras sobre o aborto, pode ter influência na maneira como o assunto será abordado no Brasil, apesar de o nosso sistema jurídico ser mais parecido com o de países como Chile ou Argentina, que recentemente descriminalizaram as interrupções de gravidez.

“Nossa influência cultural norte-americana é muito maior, então esse debate constitucional vai ter influência aqui no Brasil. Teremos que enfrentar isso para ver qual caminho adotar: manter a legislação como está, aumentar as possibilidades deixando a legislação mais liberal ou proibir de vez. Há parlamentares e projetos que defendem a proibição, mas não podemos obrigar mulheres vítimas de crimes a manterem uma gravidez decorrente de uma violência”, argumenta.

“O direito serve como uma lente que filtra o anseio social. Por mais que a sociedade seja contra ou não queira o aborto, o direito filtra e aponta os casos em que precisamos admiti-lo por uma questão de justiça, para não se tornar o próprio direito um instrumento de revitimização de uma pessoa que já foi vítima de um crime”, completa Falivene.

OS PONTOS PRINCIPAIS
> Como entender o direito à interrupção da gravidez conforme a lei brasileira

QUEM PODE FAZER
Segundo Código Penal, artigo 128, o aborto é permitido em casos de estupro ou risco à vida da mulher. Desde 2012, o STF (Supremo Tribunal Federal) também possibilita a interrupção da gravidez quando é constatada anencefalia do feto.

TEMPO DE GESTAÇÃO PERMITIDO
A lei permite que o procedimento seja realizado independentemente do período gestacional, porém a interrupção no início da gravidez diminui os riscos de complicações.

ACESSO AO DIREITO
Todo hospital com atendimento ginecológico e obstetra deve realizar o aborto, segundo a legislação. O site mapaabortolegal.org
reúne unidades recomendadas. Em caso de recusa da equipe médica, o encaminhamento do caso é um dever. A mulher também pode acionar o Ministério Público ou a Defensoria Pública para comunicar o ocorrido, em busca das medidas cabíveis.

VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL
Em 2013, com a aprovação da lei 12.845, as mulheres vítimas de estupro passaram a ter a garantia de que o atendimento seria “imediato e obrigatório” para questões de aborto em todos os hospitais do SUS (Sistema Único de Saúde). A lei cita a profilaxia da gravidez e de DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis), entre outros cuidados de saúde e assistência social.

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