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VCA 141, DEZ ANOS

Famílias tentam receber mais de R$ 4 milhões da VCA em indenizações de acidente na linha férrea

Empresa tem resistido a pagar famílias de vítimas e sobreviventes da tragédia de 2010, em Americana; viação está envolvida em "teia de relacionamentos"

Por João Colosalle / Leonardo Oliveira

06 de setembro de 2020, às 08h40 • Última atualização em 09 de dezembro de 2020, às 16h58

Dez anos após uma das maiores tragédias da história de Americana, sobreviventes e familiares de vítimas do acidente entre um trem e um ônibus do transporte municipal, que deixou dez mortos e 18 feridos na região central da cidade, ainda tentam, na Justiça, conseguir uma reparação financeira pelo triste episódio.

Responsável pelo ônibus e alvo principal das ações, a VCA (Viação Cidade de Americana) tem relutado em pagar os valores das condenações.

Pelo caminho, advogados encontram dificuldades para rastrear o patrimônio da empresa e até mesmo para localizar os atuais proprietários da viação, que passaram a ser alvos diretos das cobranças judiciais em parte dos casos.

Uma “teia de relacionamentos” entre os sócios e dezenas de outros empresários e empresas pelo Brasil afora torna a missão das vítimas de conseguir as indenizações ainda mais intrincada.

Um levantamento do LIBERAL descobriu ao menos 23 ações de indenização sobre o acidente na linha férrea movidas contra a VCA nas varas cíveis de Americana.

Ônibus da VCA ficou destruído após ser atingido por trem na linha férrea da Rua Carioba, no Centro de Americana – Foto: Marcelo Rocha / O Liberal

Em 20 processos, a empresa foi condenada a pagar indenização a familiares dos mortos ou a passageiros que sobreviveram. Outros três continuam em trâmite.

Na soma dos pedidos, os processos cobravam, inicialmente, R$ 5 milhões. Após os julgamentos, porém, as sentenças reduziram os valores para R$ 2 milhões.

Mas o tempo que as ações levaram para serem julgadas – bem como a dificuldade em receber as indenizações – já fez com que os valores fossem atualizados para cerca de R$ 4,3 milhões. Há desde condenações de R$ 5 mil a quase R$ 400 mil.

Nos 20 processos em que a VCA foi condenada, em apenas um a empresa chegou a fechar um acordo com os filhos de um passageiro falecido e dar início ao pagamento, que foi interrompido após menos da metade ter sido paga.

No restante, porém, as chamadas execuções de sentença não têm tido sucesso. Com isso, novas ações têm buscado desassociar os sócios da VCA para que o pagamento da indenização saia do bolso dos proprietários.

Os procedimentos deste tipo, chamados tecnicamente de desconsideração de personalidade jurídica, datam de anos mais recentes. Todos passaram a tramitar a partir de 2018.

Em 20 ações já julgadas e com condenação da VCA, em ao menos oito delas os advogados já optaram pela medida, que precisa ser aceita por um juiz.

Em apenas um caso, o LIBERAL identificou que já houve julgamento e que o pedido para que a condenação atinja o patrimônio dos sócios foi aceito. Mas o imbróglio judicial parece distante de se ter um desfecho.

Histórico

A VCA foi fundada em 1991, em Americana. Em 2007, a empresa assumiu a concessão da prefeitura que lhe dava direito de explorar o transporte público na cidade por até 20 anos.

Em julho de 2017, porém, uma decisão da gestão do prefeito Omar Najar (MDB) decretou intervenção na empresa e a substituiu.

O governo alegava o sucateamento da frota e a existência de dívida milionária com os cofres municipais.

Menos de uma semana após a medida, a viação ingressou na Justiça com um pedido de recuperação judicial, em que argumentava um desequilíbrio financeiro provocado, em parte, pelo aumento de custos não acompanhados por reajustes na passagem de ônibus.

A tentativa de recuperação foi recusada pela Justiça sob a justificativa de que a empresa, na verdade, sequer mantinha a operação de suas atividades.

Atualmente, a VCA tem uma dívida de cerca de R$ 13 milhões em impostos municipais, segundo a prefeitura.

No imóvel na esquina da Avenida Paulista com a Avenida Nossa Senhora de Fátima, em Americana, onde a empresa diz ser sua sede, na verdade, não há rastro de suas atividades há anos, haja vista que nem oficiais de Justiça conseguem notificá-la sobre os processos no local.

Antiga garagem da VCA, em Americana, na Avenida Paulista – Foto: Marina Zanaki / O Liberal

Busca

A dificuldade em encontrar patrimônio a ser penhorado para bancar as indenizações tem sido a missão de advogados das vítimas e familiares da tragédia.

O advogado Diego Hernandes Moreira, do escritório Castilho e Andreetta, que representa uma sobrevivente e a família de um dos falecidos no acidente, elenca as medidas que pediu à Justiça contra a VCA.

“Tentamos efetuar a penhora online das contas, de veículos, mas estavam todos com restrição ou bloqueio. Tentamos fazer a penhora do faturamento, foi deferida, mas encontramos muitas dificuldades para ter acesso”, diz.

“A empresa dificultou de todas as formas, inclusive foi multada por dificultar o trabalho do perito judicial”.

Outra representante das vítimas, a advogada Adriana Cristina Businaro Joia, relata um roteiro semelhante.

“Todo os retornos que obtivemos, [os bens] ou estavam penhorados ou estavam de alguma forma comprometidos em algum outro processo”.

Em ambos os casos, os advogados já ingressaram com o pedido para que o pagamento das indenizações recaia sobre os sócios da VCA.

“Ficou muito evidente que a empresa estava dilapidando os bens”, diz Adriana.

Nos casos do advogado Diego, a tentativa de cobrança da indenização também se estende aos antigos sócios da VCA, que contestam a responsabilidade pelo pagamento.

‘Teia de relacionamentos’

As ações relacionadas ao acidente que pedem a desconsideração da personalidade jurídica e tentam atingir os donos da VCA levam em conta, dentre outras situações, indícios de que há confusão patrimonial entre sócios e outras empresas e até a ocorrência de fraudes.

Apesar de não ter relação com as indenizações decorrentes do acidente na linha férrea, um processo que tramita desde setembro de 2019, na 4ª Vara Cível de Americana, reforça o envolvimento da VCA e seus sócios em uma “teia de relacionamentos” suspeita.

Leia outras reportagens da série VCA 141, dez anos

A ação, movida por advogados da AVA (Auto Viação Americana), lista mais de 100 sócios e empresas com ligações entre si, em um esquema similar ao que se vê em práticas de fraudes e ocultação de bens para se livrar, por exemplo, de condenações judiciais.

O processo tenta provar que as dezenas de CPFs e CNPJs, na verdade, compõem um único grupo econômico que, se reconhecido, poderia ser acionado na Justiça para o pagamento de dívidas como as indenizações
do acidente.

Entre os sócios, chama a atenção a recorrência de sobrenomes iguais, o que indicaria parentesco.

Já entre as empresas, existem coincidências que reforçam a relação entre si, como um grupo com nomes que fazem alusão a pedras preciosas ou a deuses da mitologia grega.

Outro indício é o fato de várias das empresas estarem registradas sob os mesmos endereços.

A suspeita é de que o patrimônio obtido com empresas de turismo e transporte compostas pela rede de sócios tenha sido transferido para empresas de participações e empreendimentos como forma de se desvencilhar das ações judiciais, alegam na ação os advogados da AVA, Lucas Brancati e Carolina Carrion Lolato, de Americana.

A VCA tem como sócios, atualmente, três pessoas: Waldir Mansur Teixeira, Maria Cristina Mansur Teixeira Resende e Maria Aparecida Mansur Teixeira.

Os sócios e administradores da VCA, Cristina Resende e Waldir Mansur – Foto: Reprodução

Os dois primeiros assumiram a empresa dois meses após a tragédia na linha férrea, em novembro de 2010. Já a terceira apareceu posteriormente, como sócia, mas sem poder de administração.

Em pesquisas na Justiça, Waldir aparece relacionado a processos que tentam atacar a teia de relacionamentos entre sócios e empresas ou contratos de transporte.

Na cidade de Amparo, por exemplo, ele e duas empresas das quais é sócio são alvos de uma ação de improbidade administrativa em que foi determinado o bloqueio de bens dos envolvidos.

Já Maria Cristina Mansur foi prefeita da cidade de Entre Rios de Minas (MG), entre 2012 e 2016, e, agora, se diz pré-candidata ao governo do município mineiro de 15 mil habitantes.

O LIBERAL procurou pela VCA e pelos sócios da empresa para comentar a reportagem, mas não houve resposta.

Esperanças

A costureira Solange Lindaura Moreira e Silva, uma das passageiras que morreram no acidente em 2010, sonhava em deixar a casa “bonita”.

Hoje, a residência da Rua Catulo da Paixão Cearense, na região do Zanaga, é habitada pelos filhos, que prometem concretizar esse desejo caso recebam o dinheiro da indenização.

“Eu sei que não vai trazer a vida da minha mãe de volta, mas vai nos ajudar a construir a casa da minha mãe do jeito que ela queria. Era o sonho dela de deixar a casa bonita”, diz um dos filhos, Murilo de Souza.

Apesar do desejo, a família perdeu as esperanças de receber a indenização após dez anos.

“Antes eu ficava pensando se a Justiça ia ser feita, mas hoje eu não acredito mais”, lamenta a filha Michelle Christina.

Marido e filhos da costureira Solange, uma das vítimas de tragédia, dizem querer o pagamento da indenização para cumprir sonho da mãe, de reformar a casa da família, no Zanaga – Foto: Marcelo Rocha / O Liberal

No dia do acidente, Solange voltava de um culto realizado em Piracicaba. Ela deixou cinco filhos, além de nove netos que não chegou a conhecer.

O LIBERAL ouviu familiares de todas as vítimas da tragédia. Há um consenso entre eles de que os valores não serão recebidos.

“Eu só gostaria de receber o que é de direito já que não posso ter meu pai de volta”, afirma o autônomo Paulo Cesar Lustre, filho de Domingos Lustre, cobrador do ônibus 141.

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