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Brasil

Em Paraitinga, o orgulho que nasceu da ruína

Por Agência Estado

12 de janeiro de 2020, às 15h00 • Última atualização em 12 de janeiro de 2020, às 15h13

O centro histórico de São Luiz do Paraitinga pouco lembra a paisagem de casarões, igrejas e sobrados submersos do janeiro de 2010. As memórias viraram cicatrizes nos poucos casarios ainda em ruínas e lotes vazios, mas é, principalmente, motivo de orgulho para a população, que ajudou a reerguer a cidade ao longo de dez anos.

Entre acadêmicos que estudaram o impacto da enchente, o termo “resiliência” costuma ser destacado. Eles acreditam que a força da cultura popular no município, do Vale do Paraíba, no interior paulista, como o carnaval de rua, a folia do divino e outras tantas festividades, transformou a comunidade em um exemplo de acolhida aos desabrigados e de recuperação do patrimônio histórico, tombado na esfera federal logo após a tragédia e que teve cerca de 140 imóveis da área de mais antiga afetados.

Talvez por isso, os moradores não tentam esconder as lembranças daquela enchente. O estrago causado pela chuva e pelo transbordo do Rio Paraitinga está presente em poemas, fotografias, pinturas, marchinha de carnaval e até em um espaço expositivo fixo na casa do luizense mais ilustre, (ao lado do geógrafo Aziz Ab’Saber), o médico Oswaldo Cruz, reaberta em novembro.

Se a enchente não deixou mortos, muitos atribuem aos mais de 40 instrutores de rafting que usaram botes e técnicas de mergulho para resgatar centenas de moradores e visitantes do alto de casas. A população estava acostumada com cheias periódicas e tomou primeiramente medidas para proteger bens até perceber que o rio subia mais que o esperado, passando de 14 metros da altura do leito.

Foi nesse momento que atuaram os “anjos do rafting”, homenageados em monumento entregue no dia 1.º. Um deles José Assis de Campos, de 35 anos, trabalhou por 36 horas no resgate. “As pessoas contavam que a água fosse baixar, subiam para o 2º andar e ficavam ou migravam de uma casa para outra. Tinha casa com 60 pessoas. Às vezes a gente tinha de usar o remo como pé de cabra”, lembra. “A equipe se dividiu entre os bairros que conhecia melhor, para ficar mais fácil de convencer as pessoas a saírem de casa.”

O instrutor diz que o primeiro pensamento após ver a destruição foi pessimista. “Achei que os casarios (de taipa de pilão, à base de barro) iriam todos ruir, por ficar dentro d’água, achei que São Luiz iria definhar”, comenta ele, que trabalhou no restauro da bicentenária Capela das Mercês, reaberta em 2011.

O instrutor lembra da manhã em que o sino da igreja matriz foi instalado provisoriamente após ser encontrado. “Tocou às 6 horas. A cidade inteira foi para a rua chorando, com a sensação que estava voltando ao normal (quando era soado três vezes ao dia). Todo luizense vai carregar essa história até o fim da vida.”

Moradores ajudaram no processo de reconstrução

Além de levantamentos bibliográfico e de fotos, depoimentos de antigos moradores auxiliaram nos projetos de reconstrução e restauro. Uma dessas pessoas foi Didi Andrade, 90 anos, organizadora de festejos locais por décadas e autora do hino municipal, que ajudou, por exemplo, a refazer a distribuição dos santos do altar da Capela das Mercês. “Foi uma coisa muito triste (a enchente).”

Já a cozinheira Sandra Odèssé, de 63 anos, ajudou no preparo de refeições durante dez dias após a enchente, e só parou porque morava em São Paulo. “Parecia que estava fazendo parte da cena de um filme. Não posso dizer que foi gratificante, porque foi muito ruim ver. Tive de voltar porque o meu chefe ligou”, conta ela, que se mudou para a cidade seis anos depois.

Os comerciantes Maurício Donizete Santos, de 62 anos, e José Amarildo Rangel, de 56, se orgulham dos oito dias que passaram na limpeza do centenário Mercado Municipal, ignorando recomendação dos bombeiros para manter distância. “Queria aproveitar que estava úmido, depois seria mais difícil tirar (a lama)”, diz Maurício, que guarda foto do momento. “Teve restauro, mas colocaram barro, onde pega enchente, tem de ter cimento”, reclama Rangel, ao apontar a queda de revestimento dos pilares e rachaduras no chão.

Dedicação do luizense virou tema de estudos

A “resiliência” da população local foi abordada em diversos artigos, dissertações e teses acadêmicos. A reconstrução da Igreja Matriz foi tema, por exemplo, da tese de doutorado da arquiteta Tania Cristina Mioto Silva. “A Igreja Matriz era peça intrínseca da paisagem cultural urbana e da referência cotidiana dos moradores. Reconstruir a Matriz (reaberta em 2014) era como se reconstruísse as pessoas”, diz.

“Reconstruir um contexto urbano implica a identidade do espaço e sua história, entendendo- se a existência física e o lado o imaterial. A tragédia em São Luiz nos revelou a importância de se potencializar as redes de colaboração para subsídio de ações preventivas futuras. O monitoramento de dados ambientais da região, definição de uso e ocupação do solo podem incrementar o empoderamento do poder público e das entidades da sociedade civil.”

Pós-doutora em Ambiente e Sociedade, Juliana Farinaci, de 47 anos, faz uma ligação entre a vocação festiva da cidade as mobilizações pós-enchente. “As festas são feitas de uma forma auto-organizada, não tem alguém que manda. É muito natural colaborar, e isso é um aprendizado da ação coletiva que é acionado em momentos de crise”, comenta.

“Me falavam muito da peculiaridade de São Luiz do Paraitinga. No meu entendimento, é baseada, em grande medida, nas tradições da cultura caipira. Até um pouco paradoxal: por um lado, o caipira é reservado na sua individualidade. Por outro, a cultura é muito baseada na coletividade – e a expressão máxima são os mutirões, as ajudas, o trabalho na roça, que tradicionalmente é feito de forma coletiva”, diz Juliana.

Após o estudo e outros projetos no local, a pesquisadora se mudou para o município. “Minha pesquisa me levou a admirar demais esse povo luizense, sua cultura, seu modo de viver. Também quis ser parte dessa comunidade, esse senso de comunidade, de pertencimento, algo que nunca tinha encontrado nas outras cidades que morei.”

Quando o jornal O Estado de São Paulo visitou a cidade, o Rio Paraitinga estava cheio e motivava comentários e lembranças da enchente. Entre os moradores, há aqueles que temem a repetição da tragédia, enquanto outros associam o fenômeno a lendas de bruxas e grandes serpentes.

Músico e compositor de marchinhas da cidade, Galvão Frade, de 60 anos, tem uma visão menos idealista do pós-enchente. Ele lembra dos que perderam bens materiais e critica mudanças no centro. “Sobrado que era de família virou ponto comercial, não vemos mais luzes de famílias vivendo ali”, diz.

Obras do PAC Cidades Históricas estão atrasadas

São Luiz do Paraitinga é uma das três cidades paulistas incluídas no PAC Cidades Históricas desde 2013. Das quatro obras do programa para o município, de requalificação urbanística e paisagismo, duas estão em execução e as demais, em elaboração e ajuste de projeto e orçamento.

Uma delas, a da Rua da Música, tinha entrega prevista para 2015. Em nota, o Iphan diz ter investido R$ 1,6 milhão na cidade e que a execução depende da prefeitura, além de destacar gasto de R$ 1,2 milhão na Capela das Mercês e outros R$ 10 milhões em obras emergenciais, dentre outras ações. A gestão municipal atual atribui a paralisação de obras ao prefeito anterior.

O governo estadual destacou desassoreamento e derrocamento do Rio Paraitinga, além da nova foz no Córrego do Chapéu, para “facilitar o escoamento de água” e ter apoiado a implantação do plano de macrodrenagem. Destacou convênios para recuperar a biblioteca, a prefeitura, a matriz e 17 casas particulares. Disse ainda analisar se novas ações serão necessárias.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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