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Cotidiano

Coronavírus: ‘Novo normal’ é ainda pior para as mulheres

Por Agência Estado

03 de maio de 2020, às 16h15 • Última atualização em 03 de maio de 2020, às 16h39

Em um apartamento localizado no sétimo andar de um prédio residencial de Santana, zona norte de São Paulo, a empresária Patrícia Casseano acorda antes de o despertador tocar às 6h. Ela começa o dia lavando e passando a roupa da família, umas 20 peças. Depois, é hora de preparar o café da manhã da Letícia, a mais velha, 12 anos, antes das aulas online do 8.º ano. Até umas 9h, ela faz exercícios de fortalecimento, mas confessa que deu uma bela desanimada nas últimas semanas. Às 10h, reunião de trabalho na sua agência de comunicação chamada Image 360 na qual comanda 15 funcionários. Em seguida, é o café da manhã da caçula, Júlia, de 8 anos. Ao meio-dia, ela faz arroz, feijão, carne e salada, às vezes macarrão. O arroz é fresquinho, feito todo dia, mas o feijão vai sendo descongelado aos poucos.

O cotidiano da empresária torna mais palpáveis as conclusões do relatório Mulheres no Centro da Luta Contra a Covid-19, da ONU Mulheres, que revela a maneira como elas – no mundo todo – tiveram suas rotinas afetadas pelo novo coronavírus. De acordo com o documento, divulgado em abril, a maioria das mulheres sofre com o aumento da violência doméstica, trabalha (fora ou em home office), cuida da casa, acompanha de perto a educação dos filhos com as escolas fechadas e ainda precisa prestar assistência aos idosos da família.

No caso da Patrícia, o dia ainda está na hora do almoço. Ela trabalha até meia-noite, brinca com os filhos, prepara o jantar e faxina um cômodo por dia para não acumular. Relatos sobre a multiplicação de tarefas estão presentes em diferentes regiões. E, em alguns casos, de uma maneira ainda mais dramática. A enfermeira Ana Paula Magalhães mora em Osasco. Ela é casada com o engenheiro eletricista Marcelo e tem dois filhos, o Lucas, de 6 anos, e o Arthur, de 10. Diante do pedido de entrevista para relatar seu “novo normal” na pandemia, a profissional de saúde de 39 anos pediu para trocar mensagens de texto porque sua cabeça doía quando falava. Ela estava afastada do trabalho no Instituto do Coração (Incor) por suspeita de coronavírus.

A segunda-feira em que foi fazer exame de covid-19 dá a medida de sua rotina. O marido trabalha em casa e “precisa se concentrar no trabalho”, como ela diz. Na volta do hospital, ela preparou o almoço: arroz, salada e suco natural. À tarde, deu uma geral na casa, ou seja, lavou o banheiro, varreu, passou pano úmido no apartamento, limpou a cozinha, recolheu parte da roupa do varal e estendeu a outra parte que havia deixado na máquina antes de ir ao médico de manhã. Por volta das 15h, se deitou com febre. Tomou dipirona e se levantou uma hora depois. Colocou mais roupas na máquina e recolheu as outras do varal. E já estava pensando o que iria fazer para o jantar.

Antes de ser afastada do trabalho, a situação era mais apertada. Ela fazia as tarefas domésticas e tinha plantões de 12 horas, das 19h às 7h, noite sim, noite não. “Dona de casa não tem direito de ficar doente. Vou fazendo no meu tempo. Tomo um remédio e, quando vejo que dei uma melhorada, corro para fazer as coisas”, conta a enfermeira ao ser questionada sobre como dá conta de tudo, mesmo com suspeita de coronavírus.

A maior parte das mulheres foi empurrada a assumir as tarefas de empregadas ou babás para respeitar a determinação de distanciamento social imposta pela pandemia. Foi uma medida para preservar as próprias famílias e as profissionais da possibilidade de contaminação. Foi por isso que a dentista Daniela Battesini dispensou a empregada mensalista logo no início da epidemia. “Minha rotina mudou totalmente. Estou lavando e cozinhando e sempre peço a ajuda dos meus três filhos”, diz a profissional que, nesse período de quarentena, só atende emergências no seu consultório no Alto de Pinheiros e na Unidade Básica de Saúde (UBS) do Jardim Ávila, em Osasco.

Patrícia também iniciou as tarefas de casa porque teve de dispensar a empregada Elisângela Caletti no dia 24 de março. A parceira da família há 13 anos, no entanto, continua recebendo seu salário. Ana Paula conseguiu uma faxineira – uma vez a cada 15 dias -, mas agora tem de fazer tudo sozinha. Também por conta da pandemia.

No outro lado da equação, aquele das pessoas que perderam o emprego, as mulheres também estão em posição de vulnerabilidade. O Brasil tem 6,5 milhões de trabalhadores domésticos, segundo dados de 2018 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Desse total, 92% deles são mulheres. Desde o dia 18 de março, Flavia da Silva Souza está sem esse trabalho. Ela perdeu o “bico” de empregada doméstica que fazia às sextas-feiras no Alto do Ipiranga, zona sul de São Paulo. Além disso, foi dispensada do centro de distribuição da Riachuelo onde trabalhava como auxiliar de logística. Era intermitente (sem jornada nem salário fixos). A situação é dramática porque ela não pode sair de casa, pois tem de cuidar do filho de 6 anos, Luiz Carlos Suzarte. O menino tem bronquite. “Estou vivendo com a pensão de R$ 300 do pai dele. Não é muita coisa, mas dá para a alimentação e as contas de água e luz”, diz a moradora de Guarulhos, na Grande São Paulo.

Apoio (relativo)

A jornada tripla ou quádrupla das mulheres em muitos casos deixa no ar uma pergunta: e os maridos? Elas dizem que eles ajudam. Ana conta que Marcelo limpa a cozinha após o jantar, dá banho nos meninos e organiza algumas coisas. Na casa da Patrícia, lá em Santana, Andrei, empresário do ramo de alimentação, tem ajudado com a louça, a cozinha e também com a arrumação da casa.

A contribuição, no entanto, é relativa. As mulheres brasileiras ainda trabalham quase o dobro de horas que os homens nos afazeres domésticos e cuidados de parentes, segundo os dados do IBGE. Informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), divulgada no ano passado, afirma que, enquanto as mulheres dedicaram, em média, 21,3 horas semanais a afazeres ou cuidados de parentes, os homens só empenharam 10,9 horas nesse tipo de tarefa. “Não tem jeito, nós, donas de casa, ainda administramos tudo”, conforma-se Ana Paula. Patrícia dá uma risada antes de confessar. “Meu marido ajuda mais do ele gostaria e menos do que deveria.” Ela brinca, mas fala sério.

Para a socióloga Mônica de Carvalho, a igualdade de gênero não está plenamente estabelecida na sociedade brasileira. “Existe um papel internalizado por meio da educação e da socialização das mulheres em que elas acabam assumindo as tarefas para si. Elas foram educadas para isso e se sentem culpadas se não o fazem. Elas acabam sobrecarregadas por causa da dificuldade de impor uma divisão de trabalho que deveria ser natural”, diz a professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC de São Paulo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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